Lagoa do cabo


Por muito tempo a fazenda Retiro, em Lagoa do Cabo, povoado de Gararu no sertão sergipano, de propriedade do cunhado e amigo Dagoberto, foi meu santuário e refúgio. Durante  anos de minha vida, era para lá que ia passar férias na época em que era jovem. Ir para a Lagoa do Cabo era sinônimo de liberdade. Gostava de avistar do alto da Serra da Tabanga o Rio São Francisco dobrá-la e  rasgar o sertão em direção ao oceano; ou ver a lua nascer que era um espetáculo único, ela aparecia de mansinho por detrás da serra e aos poucos ia surgindo majestosa na linha do horizonte. Como era bom estar na companhia sempre alegre da irmã La Chica, prosear com Dagoberto, tudo ali era mágico e fascinante. Em noites de puro breu, ficávamos a observar no céu as estrelas e o universo que se descortinava, era uma visão maravilhosa, as estrelas me fascinavam como se fosse um novidade eterna. Às vezes íamos para uma prainha no meio do rio, encontrar os pescadores que faziam enormes fogueiras nos bancos de areia que se formavam, que eles chamavam de “croa do rio” lá enfiava os peixes num espeto para assar em uma fogueira (piaus, pilombetas, caranhas e crumatás) e saboreávamo-los acompanhado de um punhado de farinha, goles de café,  ou de aguardente da região. Ficávamos madrugada à dentro se sentindo parte do rio. Lá pelas duas ou três da manhã já exaustos voltávamos para a sede da Fazenda Retiro, armava as redes na varanda e íamos dormir. Sempre viajava para lá com os amigos Luciano, Marquinhos ou Aldo. De manhã as 06h30min horas, La Chica preparava o desjejum matinal: café, leite fresco, queijo de coalho, produzido na fazenda, o bom e tradicional cuscuz nordestino, em seguida voltava para a rede feito um paxá, lia alguma coisa até que chegava alguém do povoado.
Os nativos eram muito curiosos e um deles me perguntava  “... moço que mal lhe pregunte vosmicê é irmão da La Chica? Era São José o pescador e ajudante de Dagoberto, tinha fama de corno, dizia-se no povoado de Lagoa Primeira que enquanto ele pescava a sua mulher lhe "metia chifres” adoidado. Aliás, as história de corno são uma constante nestas bandas do Rio São Francisco. Nos bailes do povoado Lagoa Primeira, uma cidade avançada em costumes, mulher dança com mulher e homem com homem, tudo no maior respeito e quem ousar desrespeitar pode perigar em cair na peixeira. Mas  gostava mesmo era de ir à propriedade vizinha. Na fazenda de Nhô Chico escutar os causos contados pelo ancião de quase 90 anos. Sobre Lampião, ele contou  que o cangaceiro famoso, cruzou várias vezes a região fugindo da Volante do estado de Alagoas e lhe pediu abrigo ““... nem uma nem duas vezes...;" Falava com gosto das festas que ocorriam na região, num tempo em que o rio era farto de peixes e corria livre para o mar; Das festas regadas a forró e cachaça e mulher "à toa". Numa dessas ocasiões festivas ele dançou três dias e três noites com mais de 20 mulheres diferentes, e que havia gasto três solas de sapato; Falou da história que ouviu dos mais velhos sobre o bisavô de Dagoberto, Betel Pereira que embarcou a filha num vapor devido ao fato do seu envolvimento amoroso com um escravo. Disse que essa notícia se espalhou e deixou a família envergonhada. O escravo foi morto por Betel, e a moça foi parar num seminário na Bahia e o filho mestiço fruto do seu relacionamento proibido, foi entregue a uma padre para ser criado num orfanato. Outro causo contado por Nhô Chico foi quando ele foi atacado por cascáveis numa noite que havia se chafurdado na aguardente e bêbado acabou deitando-se num lajedo infestado desses animais peçonhentos. Quarre morre. Curou-se  tomando garrafadas de quixabeira misturada à raiz de umbuzeiro, folhas de juá, de chocalho de cascavel e cascas de urtiga, e de muitas rezas e quebrantos; quase perdeu a perna com gangrena. De outra feita bêbado, vindo de Lagoa Primeira numa noite escura, sem lua, em meio à estrada íngreme e pedregosa, cheia de lajedos e desfiladeiros, caiu de cima do burro numa plantação de cansanção e urtiga. Disse que esse infortúnio foi pior que amansar jumento brabo, lutar contra boi tinhoso, ou sobreviver a um afogamento nas águas do Rio São Francisco, ou enfrentar a um ataque de cangaceiros. Contou que vinha montado no seu burro, que é um bicho cismado por natureza, se assusta com tudo. Quando já estava próximo de seu casebre,  saiu de um lajedo uma cobra balançando o chocalho o burro desembestou e o derrubou em cima de pés de urtiga e de cansanção,  plantas que são terríveis, pois seu espinho muito pequeno lança uma espécie de veneno na pele, o contato causa dor imediata devido ao efeito irritativo, com inflamação, vermelhidão cutânea, bolhas e coceira, além urtigas haviam no lugar em que ele caiu, muita "cabeça de frade" e mandacarús,  com seus espinhos pontiagudo e terríveis, que doem mais que espinha de surubim enfiada na pele.
Disse-me que quando veio abaixo ficou desacordado por algum tempo e quando voltou a si, sentia uma dor terrível ocasionada pelo efeito do veneno das plantas sobre o seu corpo, estava inchado de dar gastura. Já semiconsciente, com a pressão baixa e sentindo-se com muita febre, viu que em sua direção vinha a cascavel que assustou seu burro e o fez cair, voltava do rio, me disse que essas cobras costumam sair das tocas a noite para beber água e caçar pequenos roedores. Viu que o bicho vinha em sua direção, pôde ver seus olhos como dois tição, ouvia seu chocalho ameaçador, pensou naquela cobra que o havia picado e quase o levou a morte, suava com calafrios, os espinhos cravados em sua pele doíam, o estado febril o deixava imobilizado, mas mesmo assim puxou o facão que estava na bainha presa à perna e se preparou para golpear o bicho feroz na cabeça. Disse-me que se naquela ocasião a cobra o picasse fatalmente iria a óbito ali mesmo, caído e já rendido.
 “Mas o bicho não ataca não, viu, só se ele for ameaçado, é certo que ela sentiu a minha presença, mas eu não estava na trilha dela, e ela estava saciada acabara de beber água e vi que trazia em sua boca um preá”. Ela olhou para mim, eram dois olhos de tição, fiquei com asco, peguei o facão e me preparei, sabia que ia vir com toda carga para cima, cascavel é cascavel, seu veneno é o mais mortífero das cobras que habitam esse sertão de meu Deus, a temida cascavel, com sua pele escamosa e oleosa, seu andar de serpente sorrateira e ameaçador. Mas para a minha sorte ele passou há uns cinco palmos de onde estava . Eu suava muito, o coração batia feito doido, parecia que queria saltar desse velho peito, estava com uma febre de lascar. Nessa estrada íngreme e triste e deserta, cheia de socalcos e desfiladeiros,  um convite ao perigo e a morte e por ela quase não passava ninguém, de vez em quando um morador das redondezas. Para a minha sorte, continuou ele a narrar a sua desventura, vinha pela estrada deserta um morador das vizinhanças chamado João Faustino, que morava lá no pé da serra, montado em seu jumento, gritei ofegante seu nome e ele prontamente veio em minha direção e me encontrou com a cara cheia de espinhos de mandacarú, o corpo vermelho e inchado da ação da urtiga, a causa rasgada, sangrando, inchado de dar dó e com bafo de cachaça na boca”.
- é o cumpade Chico?
- é sim
- o que se asucede cumpade? Está só que nem farrapo.
- espera aí que vou tirar vosmicê daí, mas tenho que cortar os pés de cansanção e os de urtiga.

Quando finalmente abriu caminho seu compadre lhe pegou e colocou nas costas e depois passou para as do burro que vinha com seu filho Quirino, estava quase morto e pedindo a Deus que lhe dessem um gole de água e que chegasse a sua casa para que sua mulher tirasse pacientemente os espinhos e lhe desse um chá de quebra quixabeira e passasse folha de juá com leite de jumenta. (...).


 
Labareda
Enviado por Labareda em 13/11/2016
Reeditado em 02/01/2017
Código do texto: T5822343
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