O vaporizador
Elenco reunido, técnicos a postos, fui revisar as marcações da cena na câmara funerária da pirâmide.
- A múmia entra pelo corredor... dá cerca de três passos. O Dr. Capistrano vai estar deste lado do sarcófago. Lorenzo, do outro lado, segurando a lanterna. Clarice, na cabeceira do sarcófago, de frente para o corredor.
Os atores se posicionaram. O figurante vestido de múmia foi para sua marcação e ensaiou alguns gestos ameaçadores, braços estendidos.
- Clarice é quem vê a múmia primeiro. Ela grita e...
- Perdão? - Interrompeu-me a atriz.
- Pois não, Maria Luíza - respondi, preparando-me para uma diatribe.
- "Clarice grita" não está no roteiro, Renato. "Clarice reage à entrada da múmia", mas não "Clarice grita".
- Pois não, Maria Luíza. E o que sugere que Clarice faça ao ver a aparição da múmia? Pigarreie?
Os técnicos deviam estar se divertindo com o diálogo, mas tentavam se manter sérios.
- Está no roteiro. A frase é: "a múmia!"
- Ou seja, "Clarice grita".
- Clarice grita "a múmia". Não é necessário que ela grite antes de falar, como um estereótipo de donzela em perigo.
Respirei fundo. Era o que dava contratar atrizes com militância feminista, pensei. Daqui a pouco, ela iria querer começar a alterar o roteiro por não gostar das falas.
- Está bem, Maria Luíza. Solicitação atendida. Clarice grita "a múmia" e o Dr. Capistrano saca o revólver e dá três tiros. A múmia cai com o impacto... nesta marcação... e depois se levanta. Lorenzo então exclama: "balas são inúteis contra essa coisa". É então que o Dr. Capistrano pega o Amuleto de Ra e o atira na múmia.
- Perdão.
Maria Luíza estava com o dedo erguido.
- Pois não, Maria Luíza.
- Supostamente, o Amuleto de Ra faria a múmia recuar. Mas só há um amuleto, correto?
- Correto, mas não vejo o que isso tem de mais...
Ela se posicionou na marcação da múmia e disse:
- Alguém me jogue aquele rolo de fita isolante como se fosse o amuleto!
Fiz sinal para um eletricista. Ele desincumbiu-se da tarefa. Com agilidade, Maria Luíza esquivou-se do objeto e avançou na direção dos outros dois atores.
- Perceberam? - Ela perguntou, mãos nas cadeiras.
- Não necessariamente uma múmia de três mil anos possui a sua agilidade, Maria Luíza - ponderei.
- Mas nada impede que ela dê a volta no sarcófago e ataque pelo outro lado! - Exclamou ela. - Será que o roteirista é tão burro que não percebeu isso?
Tive que reconhecer que ela havia levantado um ponto pertinente.
- E o que sugere fazer, então?
- Ponham um vaporizador na cena.
- Um vaporizador?
- Sim, um vaporizador, com água. O que uma múmia desidratada pode temer, na ausência de fogo? Água, naturalmente.
E essa agora. Uma especialista em múmias!
- Produção, tragam um vaporizador - disse eu para as duas garotas que acompanhavam a cena do fundo do estúdio.
E para Maria Luíza:
- Eu imagino então que, depois do Dr. Capistrano dar os seus tiros, a brava Clarice pula na frente, de vaporizador em punho...
- Confesso que nem havia pensado nisso... - disse Maria Luíza, com ar de modéstia. - Mas aceito a sua sugestão!
[22-04-2017]