Seu Dico

SEU DICO

Martinho é aposentado da Base Aérea de Belém, civil como meu pai, um bom amigo. Conheço-o desde pequena, quando morava em Icoaraci. Sempre vou visitá-lo, pois, continua morando nas “Andradas”, na mesma casa, com um quintal que é uma beleza, cheio de arvores, tais como: açaizeiros, bananeiras, goiabeiras e outras, além de uma diversidade de aves.

Outro dia levou-me ao quintal, pegou uma galinha caipira e me deu dizendo: ”Leva pra fazer um cozido igual aquele de parida que fazias para tua mãe”. E realmente o fizemos com pirão escaldado e tudo.

Em uma das visitas a seu Martinho, estávamos num bate papo em frente a sua casa quando chegou um senhor moreno de aproximadamente 65 anos, era seu Dico, que logo foi dando boa tarde, estava todo de branco e usava um chapéu.

Martinho brincou dizendo que muitas pessoas acham que seu Dico é um boto desencantado, reparando bem, lá seus encantos o homem tinha, era muito simpático e com pinta de “Barão”, falou-me que mora logo pertinho daqui, na terceira rua entre as travessas Andradas e Soledade.

Antes de seu Dico chegar estávamos contando alguns “causos” folclóricos de nossa Amazônia e também de outras regiões. Martinho disse que aquele já tinha passado por poucas e boas e pediu a seu Dico para que contasse o que os outros já conheciam. Não se fazendo de rogado disse: “Bem, tem gente que não acredita, pensa que é estória de Trancoso, mas quase já fui engolido por uma boiuna lá pelas bandas de Barcarena. Era noite de lua cheia, estávamos na ponte em frente à venda do compadre Antônio. Desci, peguei a montaria pra pescar mais adiante quando vi dois faróis vindos em minha direção, pensei ser outra montaria com candeeiros, mas quando! Era a bicha se aproximando! Joguei uns cinco quilos de carne de capivara na direção dela que deu o bote na carne e assim fui salvo pulando para a ponte. Também já fui ferrado por arraia, sendo que o ferrão ficou aqui dentro” e, mostrando o pé, realmente tinha uma imensa cicatriz.

Seu Dico continuou: - “Outro dia, fui apanhar água no poço, desequilibrei e fui caindo, de tão fundo e escuro que lá estava, fechei os olhos e fiquei esperando quebrar todos os ossos na queda, mas fui caindo devagarinho, não me aconteceu nada, senti que tinha alguém me amparando. O povo diz que foi a mãe do poço que me salvou”.

Enquanto seu Dico falava, lembrei que quando criança aqui mesmo em Icoaraci, onde passei minha infância e juventude, ficava noites e noites olhando pra dentro do poço pra ver se via a tal mãe que diziam ser encantada e muito linda, uma espécie de Iara.

Minha coragem era tanta que lembro também que colocava água de lavagem de carne fresca em dois pés de tajá que ficavam ao lado de casa, e assim “em noite de lua cheia eles virariam cachorros lobos para guardarem nossa casa” como dizia o povo. E seu Dico continuando o relato mais parecia o caboclo falador Riobaldo, de Guimarães Rosa, quando alertou-nos: “Bem, como está tarde vou contar a ultima, que é de dar calafrios: Minha mãe, a quem chamo de mãezinha desde pequeno, me acostumou com caribé e três vezes na semana quebra um ovo caipira, joga dentro pra dar mais sustança, diz ela. Então todos os dias de madrugada, antes de tomar o café em casa, vou até lá que é pertinho, logo alí nas Andradas, tomar o saboroso caribé. Só que numa noite pensei já ser de madrugada, parecia tão claro, me levantei, não olhei para o relógio e saí. Quando vou chegando próximo a uma Mangueira que fica em frente à casa do Fancho, meu amigo, ouvi um assobio ‘fiiti Matinta Pereira’. Meu coração bateu tão forte que pensei que fosse desmaiar, como já estava mais pra lá do que pra cá, passei correndo. Mas logo, outro assobio. Meus cabelos ficaram em pé. No terceiro assobio já estava em frente a casa de mamãe gaguejando e quase desmaiando me joguei no chão. Era um suadouro com dor em todo o corpo e logo a febre apareceu. Não fui trabalhar durante três dias, minha mãe, que é benzedeira, me benzeu com folha de arruda e água benta, sem tirar a fita vermelha da Congregação das Filhas de Maria do pescoço. Depois que contei o ocorrido ela mandou comprar três pedaços de fumo pra que eu colocasse a noite, no pé da mangueira onde a dita cuja me apareceu. Deixei e no outro dia o fumo não estava mais, para mim pelo menos ela nunca mais apareceu”. Todos que lá estavam balançaram a cabeça confirmando o que ele dissera.

Eu não sou lá muito crente dessas coisas e como já estava muito tarde me despedi, justificando que tinha tarefas a fazer, que carecia de bastante tempo e atenção. Seu Dico brincou: “É isso aí, serviço perfeito não tem bronca” e a turma riu, pois já conhecia seu velho jargão. Ele é uma figura.

Fui caminhando para o chalé dos Tavares Cardoso, onde estava hospedada, que também fica na terceira rua. Ao passar próxima a dita mangueira, que ficava entre as Andradas e a Soledade, foi me dando um leve arrepio e passei correndo. Será que estava com medo da Matinta Pereira?

!º Lugar FEART, Belém-PA.