A Imperatriz

- Quem escreveu essa merda?!

Eu estava de costas para a entrada do set de filmagens, sentado em minha cadeira dobrável de diretor - sim, aquela com o meu nome escrito nas costas e "DIRECTOR" abaixo, que Tina mandara fazer especialmente para mim em Hollywood - mas, a voz de Maria Luíza irada era inconfundível. Sem me virar, pousei a caneca de café sobre a mesinha ao lado da cadeira e respondi, em voz alta, para que toda a equipe ouvisse:

- Fui eu, Maria Luíza.

No instante seguinte, ela praticamente se teleportou para o meu lado, paramentada e maquiada como Aelita, a Imperatriz de Marte. Mas em vez de um projetor de raios croma, trazia nas mãos uma cópia amassada das cenas que iríamos rodar aquela manhã. Imediatamente, me concentrei na Chama Violeta, envolvendo e protegendo meu corpo de qualquer vibração negativa que ela pudesse estar me enviando. Não funcionou durante muito tempo.

- Renato, que falas horrendas são essas? "Marte é vermelho por causa do sangue derramado das mulheres"! Mesmo? Estamos o quê, sendo patrocinados por um fabricante de absorventes?

Metade da equipe riu. Fiz uma lista mental de demissões.

- Escute, Maria Luíza... o estúdio me pediu especificamente para alterar algumas das suas falas.

- POR QUÊ?

- Bom... o Jorge Pedrosa parece que andou reclamando do seu... excesso de protagonismo... com os executivos do estúdio.

Silêncio no set. Os olhos de Maria Luíza por trás de camadas de sombra azul, me pareceram ainda mais gelados.

- Como é o nome da merda do filme?

- A mer... o filme se chama "A Imperatriz de Marte".

- E foi precedido por?

- "Rainha da Terra" e "Uma Princesa de Vênus".

- É uma ascensão da personagem, você concorda?

- Sim - suspirei.

- Então mande o Jorge Pedrosa ir lamber o saco dos executivos! Eu quero essas cenas reescritas!

- Quer dizer... agora? E por reescritas você quer dizer, voltar ao que eram?

- Agora. E não! EU vou dar o tom e VOCÊ vai escrever!

Olhei à minha volta: consternação geral. Bati palmas.

- Pessoal, pausa para o lanche!

* * *

Me tranquei no escritório para ligar para Sandoval e lhe explicar o porquê de ter que jogar no lixo as cenas que ele gostara tanto, quando as lera na noite anterior:

- Eu preciso da Maria Luíza. Sem ela, essa trilogia não fecha de jeito nenhum!

- Eu entendo que ela é a atriz principal, mas as cenas em que o personagem do Jorge Pedroza tira sarro da cara da Aelita ficaram ótimas!

- Aelita é a Maria Luíza, Sandoval! E Aelita não gostou de ser feita de idiota. A emenda ficou pior do que o soneto.

- Precisamos do nome do Jorge Pedroza nesse filme, Renato. Ele acabou de fazer uma minissérie de sucesso, e o público espera vê-lo num papel de destaque... não como escada dessa destrambelhada da Maria Luíza. Não temos uma segunda opção para o papel? A Júlia Cortes, por exemplo... poderíamos matar a Maria Luíza... digo, a Aelita, no início do filme e trocá-la por uma personagem mais jovem e com mais carisma.

Confesso que balancei com a oferta; Júlia Cortes poderia significar um recomeço para a série. Em seguida, maldisse minha tibieza.

- Acho que poderíamos ter a Júlia Cortes na próxima trilogia... se houver uma próxima trilogia. Mas, objetivamente, preciso hoje de Maria Luíza. E do Jorge Pedroza.

- E como vai conciliar isso? - A voz de Sandoval soou cética.

- Darei um jeito - retruquei. - Nunca perdi meu tempo por ouvir Maria Luíza.

- Você é o diretor. Você é quem sabe - concluiu Sandoval.

* * *

O assistente posicionou-se em frente à câmera com a claquete aberta nas mãos, e "cantou":

- Cena 5, plano 3, tomada 3!

Bateu a claquete e saiu da frente da câmera.

- Ação! - Gritei.

Aelita está sentada em seu trono, no salão de recepções do seu palácio subterrâneo, quando entra Ivan Ivanov, o explorador terrestre interpretado por Jorge Pedrosa, escoltado por quatro homens-lagarto portando alabardas prateadas. Os homens-lagarto o obrigam a se ajoelhar perante a Imperatriz de Marte.

- Corta! - Gritei. E depois:

- Valeu!

Jorge Pedroza ergueu-se do chão do estúdio, limpando uma poeira imaginária dos joelhos do uniforme preto.

- Acho que já chega de ficar me ajoelhando para a Aelita, não é Renato? - Comentou, ao passar por mim, dirigindo-se à próxima marcação de cena. Fiz de conta que não ouvi.

A câmera foi reposicionada e o assistente foi para a frente dela, claquete aberta.

- Cena 5, plano 4, tomada 1!

- Ação!

Aelita sentada em seu trono, olha triunfante para Ivan Ivanov, ajoelhado à sua frente, mãos amarradas às costas.

- Sabe porque Marte é vermelho, terráqueo?

- Por causa do sangue derramado das suas mulheres? - Pergunta ele, em tom desafiador.

- Oh sim... muito sangue derramado - retruca ela com um sorriso sardônico. - Mas não marciano: nosso sangue é verde!

- Corta! - Gritei.

- [19-09-2017]