Levantei-me cedo no albergue de Vega de Valcarce, pois estava excitado para entrar finalmente na última Comunidade Autônoma do Caminho: A Galícia – a mais verde, chuvosa e úmida região da Espanha, com seus enormes rebanhos bovinos, excelentes queijos, frutas diversas, aguardente da boa e grande variedade de pescado e frutos do mar, principalmente o que eu tanto almejava: polvos e mais polvos.

A Galícia é a região espanhola com o maior percentual de consumo de polvos “per capita” de toda a Espanha. Não sei como os oceanos conseguem suprir essa demanda. Haja polvo!!!

Minha decisão de expedir a mochila para o Alto do Poio, meu próximo destino fora acertada, pois logo após Ruitelán e Las Herrerias, comecei a pegar uma forte chuva exatamente na hora em que iniciava a subida. Entre escorregões e chutes em muitas pedras soltas, cheguei à localidade de La Faba com apenas 25 habitantes onde descansei um pouco, pois teria que subir mais 300 metros até La Laguna, último vilarejo da Comunidade Autônoma de Castilla y León com igualmente 25 habitantes.

Finalmente, após passar por La Laguna, encontrei o marco em pedra com o brasão da Galícia bem à beira do Caminho. Tirei minha capa de chuva e a pequena bolsa que levava a tiracolo, para iniciar um alegre e solitário bailado. Eu pulava para um dos lados desse marco divisório e cantarolava: “Estoy en Galicia”. Logo depois passava para o lado oposto e dizia: “Estoy en Castilla y León” e assim fiz por diversas vezes. Sentia-me como uma criança, rindo de mim mesmo e achando que tudo aquilo era uma loucura. A chuva aumentava inexoravelmente caindo em grossos pingos como se quisesse participar da minha inusitada comemoração.
Assim que comecei a subir os últimos 130 metros que me separavam do O Cebreiro, a chuva cessou de pronto, mas pequenos riachos formados pela enxurrada desciam em minha direção à medida que eu caminhava.

Para piorar as coisas, uma densa neblina começou a tomar conta do cenário. Eu não conseguia ver mais nada além de 5 metros diante do meu nariz. Um vento gélido soprava de cima para baixo, retardando impiedosamente minha ascensão. Dei uma topada numa grande pedra bem no meio da trilha e quase caí de cara na lama. Apoiei instintivamente minha mão no chão, mas acabei luxando meu dedo mindinho. Comecei a recitar aos berros todos os palavrões que já conhecia - e os que não conhecia também.

Estava visivelmente irritado e sob intenso estresse, quando quase que por magia, após uma forte rajada de vento, vi descortinar-se diante dos meus olhos um dos mais lindos cenários de todo o Caminho. Finalmente lá estava ele – O Cebreiro – com toda a sua majestade: um antigo povoado celta da Idade do Feno perfeitamente conservado e ainda com habitações da época.
Ali existe uma pequena e emblemática igreja toda em pedra dedicada a Santa María La Real, onde teria ocorrido o milagre do Santo Graal.

Conta-se que um camponês, tendo vencido uma terrível nevasca para assistir à Santa Missa dominical, bateu à porta do pároco local por ter encontrado a igreja fechada. Este, meio contrariado por ter que abrir a igreja apenas para o humilde camponês, tentou dissuadi-lo de sua pretensão dizendo que não seria necessário ter tanta fé assim, pois Deus entenderia.


O camponês não desistiu e o pároco visivelmente contrariado resolveu celebrar rapidamente uma missa, dizendo apenas algumas palavras e uma rápida oração em meio a qual murmurou baixinho no momento da consagração: “esse camponês veio até aqui vencendo imensa tempestade somente para me incomodar e ver um simples pedaço de pão e um pouco de vinho”.

Imediatamente o vinho se transformou em sangue e a hóstia em carne. O milagre atraiu gente de todos os rincões. O cálice sagrado ainda se encontra no interior da igreja dentro de uma redoma de vidro e fortemente protegido por dispositivos eletrônicos de segurança.

Os corpos do pároco e do camponês se encontram sepultados até hoje sob o altar onde aconteceu este comprovado milagre.

 
Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 29/09/2017
Reeditado em 14/10/2017
Código do texto: T6128336
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