Sou do tempo

Sou do tempo de amaciar roupa no cacete. Encher os tonéis, pegar o balde, encher a bacia e pegue paulada, pegue cacetada, pegue sabão pra esfregar e tirar a sujeira inteira, aproveitar o sol e botar a roupa para quarar no quarador feito de pedras.

Sou do tempo de tirar a roupa do quarador, fazer o fogo à lenha, colocar as latas secas de manteiga no fogo com bastante água e ferver as roupas para tanger as mazelas, as coceiras, as impinges e outras curubas. Fervia, fervia inté sentir que os panos estavam limpos.

Sou do tempo de varal nos quintais: estirar os arames, fios e cordões de uma estaca para outra da cerca. Enxaguar as roupas brancas no anil; enxaguar as roupas de cor com um tiquinho de água de rosa, trocer, trocer inté tirar a água todinha, bater no vento, bater no vento e estirar nos varais com os pregadores...

Sou do tempo de esperar o final do dia e no por do sol apanhar toda a roupa, dobrar, separar e entrar pela noite passando pano por pano. Pegava o ferro à brasa, fazia o fogo nele, pegava uma vasilha com água, um pedaço de pano velho, molhava as roupas e passava o ferro. As camisas tinham de fazer o colarinho na perfeição e as roupas de linhos tinham de ser passadas na goma.

Sou do tempo de fazer a trouxa de roupa no lençol branco alvejado, colocava na cabeça e ia deixar na casa da comadre, da patroa, sem amarrotar ou suar qualquer peça. As peças mais íntimas não podiam ficar à vista, tinha de ser guardada a vergonha alheia. No meu tempo se tinha respeito e esse respeito era retribuído. Quantas mulheres não foram obrigadas a casar porque os homens se atreviam a olhar partes proibidas dos corpos alheios.

Sou do tempo de colocar os panos de chão de molho e deixá-los tão alvos quanto os panos de prato. Isso era para dizer que a dona da casa era limpa e naquela casa se podia comer e beber água sem nojo ou gastura.

Sou do tempo de carregar água nas roladeiras, de ir buscar água no rio, colocar um pano na boca do pote e coar a água para ser bebida... Do tempo de sentar nos alpendres das casas e esperar as visitas, de ler romances, poesias, escutar modas de viola, brincar de dramas e gostar de beijo roubado. Do tempo de brincar de cai no poço e escrever o nome do amado na faca e enfiar na bananeira.

Sou do tempo do passado, que ficou detrás da porteira, levado pelo temporal e marcado no calendário de santo pregado na porta do camiseiro... Do tempo encerrado que nem dando corda ele volta a existir, desse tempo de cheiro de naftalina presente em minha memória e me faz ser muito feliz e de nunca desistir de lembrar.

Marcus Vinicius