O dom da eloquência
E ao cair da noite, levaram o doutor Covarrubias à presença do capitão Ordóñez, que se instalara com seus homens numa casa rústica à beira da estrada. Sentado numa cadeira de frente para a porta da habitação e fumando Gauloises, o capitão parecia relaxado, o dolmã do uniforme aberto. Lançou um olhar preguiçoso ao médico.
- Então, doutor... é falangista ou da CEDA?
- Não tenho filiação política. Sou espanhol, apenas - declarou Covarrubias com firmeza, chapéu nas mãos; isso também lhe permitia disfarçar o tremor nas mesmas.
- E é um bom cirurgião, pelo que soube.
- O único nesta região. Se isto faz de mim bom, talvez seja apenas uma coincidência.
- Precisamos dos seus préstimos, doutor.
- Algum dos seus homens está ferido?
- Não, na verdade... preciso que opere um homem.
Covarrubias olhou ao redor. Paredes de pedra, chão de terra batida.
- Aqui?
Ordóñez abriu as mãos.
- Não podemos lhe oferecer um centro cirúrgico, doutor.
- E... do que se trata?
- Quero que corte uma língua... mas o sujeito tem que ficar vivo.
O capitão estava sorrindo, assim como alguns dos seus homens que ouviam o diálogo na sala em silêncio.
- Cortar uma língua - repetiu lentamente Covarrubias.
- Pegamos o poeta, doutor. Sabe a quem eu me refiro. Ele sempre usou aquela sua língua afiada contra os valores do nosso belo país... está na hora de perdê-la e calar-se para sempre.
Covarrubias aprumou-se.
- Se for quem eu estou pensando, de nada adiantará apenas cortar-lhe a língua... continuará a escrever e o denunciará, tão logo a guerra tenha acabado. Tem amigos influentes no exterior... e o próprio pai dele é uma figura importante aqui mesmo, na Espanha.
- Está me sugerindo que além da língua lhe ampute as mãos? - Indagou Ordóñez, ampliando o sorriso no rosto.
Covarrubias encarou-o com tristeza.
- Estou sugerindo que, se pretende fazer algum mal contra este homem, que vá até as últimas consequências. Não bastará apenas cortar-lhe a língua e amputar-lhe as mãos. Terá que fazer parar o local de onde vêm as suas ideias.
E levou a mão direita ao coração.
Naquela triste madrugada espanhola, sem que nenhuma violência maior fosse cometida contra seu corpo, o poeta foi conduzido a um barranco e ali encontrou sua morte, sob a forma de um pelotão de fuzilamento.
- [16-08-2018]