*Um trabalho de descarrego

Um trabalho de descarrego

Minhas filhas já me disseram:

–Painho, não sei como o senhor consegue gostar de um trabalho tão estafante e com esse grau de perigo.

De fato, topografia parece ter sido elaborada para cabras de cabelos nas ventas, sangue no olho e rede rasgada. Onde um topógrafo não entra, o progresso não chega e, muitas vezes, nem o fogo passa.

Um dia, saímos pela manhã, já sabendo que teríamos “um dia daqueles”!

Muito trabalho para pouco tempo. Por volta das 13h40min, chegamos num local que nem nome tinha ainda. Só lembro que ficava por detrás do campus da U.F.S., debaixo de uma rede de transmissão de alta voltagem de energia elétrica da CHESF.

Sem almoçar, faltava-nos disposição e nos sobrava fome. Fome daquelas

de comermos trilho mal passado em lugar de bife, e arame farpado, no lugar do

macarrão. A estafa não era pequena diante de um terreno íngreme, repleto de crateras. Combinamos que botaríamos para derreter e, quando terminássemos, iríamos embora de uma vez. Mesmo sendo uma turma que não foge à luta, essa era a forma de encorajar os guerreiros.

Demoramos mais ainda uma hora e meia e, no retorno, uma surpresa!

A estrada da CHESF é cortada em cruz, por outra conhecida como Estrada da Cabrita e Cabrita é um povoado do município de São Cristóvão, cidade sergipana limítrofe com Aracaju. Ao fazermos essa curva com o carro embalado na descida, ouvi quando alguns dos trabalhadores gritaram afobados:

– Para! Para logo!

Só conseguimos estacionar com segurança uns vinte metros após e a cambada já desceu alucinada, correndo na direção oposta a que seguíamos. Eu desci depois, sem saber o real motivo de tantos afobamentos, quando eles chegaram no cruzamento. Demoraram pouco e se a ida foi de pura euforia, o retorno foi coberto de uma decepção indisfarçável e de muitos xingamentos.

Traziam dois litros de cachaça, algumas moedas e, pelo achado, eu notei que se tratava de um despacho de macumba. Então, procurei saber o motivo para tantos desapontamentos, já que a parada dera lucro imediato.

Apontaram-me um cachorro, desses de raça, matacalango, que só tinha a alma, pois até o couro e os ossos já não serviam pra nada. O coitado estava com uma pança que mais parecia que ia parir. Disseram-me que o infeliz tinha acabado de comer nosso almoço, que estava dentro de um prato de papelão. Pelo tamanho e cheiro, era um peru assado, de uns dez quilos! O cão o comera com termômetro e tudo e só deixara um pouco de farofa espalhada pelo chão.

– Cachorro infeliz, desgraçado! Ainda tem gente que diz que o cachorro é

o melhor amigo do homem!

– Almoço nosso não, eu mesmo não comeria aquilo nem por decreto islâmico.–falei.

Comecei a rir da pança do esquálido animal e da cara lambida. De vez em quando, ele passava a longa língua para limpar o focinho e os arredores da boca toda suja de farofa. Com toda certeza, aquele cachorro iria montar acampamento ali por perto, à espera de um novo banquete.

– Pois agora é que estou mesmo com raiva daquele cachorro ingrato. Comida que dava para quatro pessoas, ou melhor, alimentaria três, já que você não queria... Eu mato já aquele infeliz, filho de uma cadela das costas oca! Cachorro desalmado!

Segundo o que ouvi contar à boca miúda, as oferendas dos despachos de macumba são para que as pessoas peguem, comam e bebam. Assim, os defeitos de quem os oferece passam para quem os usufrui.

O jesuíta Oscar Quevedo, de felicíssima memória, psiquiatra e doutor em parapsicologia, contestava e oferecia US$10.000,00 para quem conseguisse lhe botar qualquer feitiço. Dizia que tudo não passava de charlatanismo e crença tosca.

Pelo sim, pelo não, duvido que aqueles dois que pegaram a cachaça fiquem mais pinguceiros do que já são...

Para o cachorro, aquele foi o dia do caçador.

Eu vi e conto.