*Deus existe - II

Deus Existe - II

Imaginemos uma linha partindo do ponto A para o ponto B e outra partindo do ponto C em direção ao ponto B, conforme a figura abaixo.

O problema era que estávamos no ponto C, numa mata fechada, sem noção de distância e sentido, com a obrigação de chegarmos ao destino. Trabalhávamos sem rádio de comunicação, sem os atuais sistemas de coordenadas UTM. Na época não dispúnhamos de GPS, nem nos passava pela cabeça andar com sinalizadores de fumaça náuticos. Nossa única fonte de consulta eram aerofotografias de mais de dez anos atrás.

Resumindo: era como voo cego, sujeitos a uma pane seca, sem local de aterrissagem. Nossa maior certeza era de que não poderíamos estar muito longe do ponto desejado (B).

A.............................................................B

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.C

Em topografia, temos a premissa de que não existe problema insolúvel e uma certeza: nada será para amanhã, pois tudo é para ontem. A impressão é que alguém está com o pescoço da mãe na guilhotina, dependendo daquele serviço para se safar.

Já era final de tarde, longe do acampamento. Resolvemos retornar e equacionar nossas possibilidades, que não eram muitas, para pô-las em prática no dia seguinte.

Durante a reunião noturna, ficou acertado que uma turma iria para o ponto C, enquanto eu iria de carro pela estrada carroçável até o ponto B, e exatamente às 6 horas da manhã, eu explodiria três foguetes de um tiro, desses de festas juninas, com um espaço de um minuto entre eles. Os que estavam no ponto C, ouvindo os estampidos, alinhariam o teodolito naquela direção e, assim, resolveríamos nosso caso.

No dia seguinte, saímos muito cedo, ainda mais cedo do que de costume, com nossas estratégias definidas e revisadas. Exatamente às seis horas da manhã, eu já estava posicionado no olho de um frondoso bacurizeiro, pronto para deflagrar o primeiro tiro, quando um imprevisto aconteceu.

Encostado ao tronco do pé de bacuri, eu deixara uma cabaça d’água para as minhas sedes. Até então, não existiam relógios digitais. Nossos relógios mecânicos automáticos eram aferidos diariamente com A Voz do Brasil, pois se fazia mister trabalhar com a hora oficial rígida, isso porque, a cada dez quilômetros de projeto, fazíamos observações astronômicas e, nesses casos, não se admitiam atrasos.

Quando eu ia soltar o primeiro foguete, ouvi vozes de pessoas na mata. A minha hesitação foi de medo. Explodindo os foguetes, certamente as pessoas seriam tomadas de pânico e sairiam correndo mundão afora, sem destino, e me fazia temer um acidente. Por outro lado, atrasando as explosões, eu causaria preocupação aos meus amigos que aguardavam atenta e ansiosamente pelo sinal. Acabei optando pela última possibilidade.

Como as pessoas do interior costumam falar alto e no silêncio da mata os sons são mais audíveis, não foi difícil interpretar a conversa que se dirigia em minha direção. Eram dois caçadores que haviam passado a noite na mata e estavam retornando para suas casas ao amanhecer do dia.

- Compadre - falou um deles - nós estamos ferrados! Passamos a noite no mato, não matamos nem um calango e agora, quando eu chegar em casa, vou comer arroz branco sem nada.

Eu mordi os beiços, para não rir da resposta do amigo. Não os via, mas os ouvia muito bem.

- Oxente, compadre! Ocê tá reclamando do quê? Pior sou eu que vou comer é nada sem arroz branco!

- O chato mesmo compadre, é que nós estamos perdidos. Estamos rodando em círculo e nem é de agora, já passamos umas dez vezes perto desse pé de bacuri que nunca vi na minha vida.

- Pois é isso mesmo, eu já estava desconfiado e, pra complicar. estou morrendo de sede e não encontro cipó d’água algum... nem uma grota nesse sertão seco levado da breca!

Nisso, eles chegaram debaixo da árvore onde eu estava e, para minha surpresa, não eram dois caçadores, mas apenas um. Ele falava sozinho e, ao mesmo tempo, respondia em timbre de voz diferente, como se estivesse com o suposto compadre.

A primeira coisa que ele viu foi a cabaça encostada à árvore. Admirado e muito mais desconfiado que cachorro em beco cheio de meninos de rua, foi pé ante pé aproximando-se. Ergueu a cabaça, sentiu o peso e viu que estava cheia; balançando-a, ouviu o barulho característico; retirou o sabugo de milho da boca da cabaça e derramando um pouquinho na palma da mão, teve a certeza de que estava diante da melhor água de cabaça do mundo!

Beber água de cabaça é algo maravilhoso! A gente bebe e toma banho ao mesmo tempo. Ele colocou a boca na boca da cabaça e foi bebendo, bebendo, erguendo os olhos para cima e o seu olhar acabou indo direto no meu, com a velocidade de uma flecha timbira. Ficou petrificado ao me ver, mas eu o acalmei, dizendo-lhe que poderia beber calmamente, pois eu iria soltar três foguetes e descer em seguida. O meu relógio marcava 6h10min, um atraso injustificável.

Quando desci, começamos a conversar e eu já sabia parte da história, inclusive que ele estava desorientado na mata. Ele morava na cidade de Governador Eugênio Barros, no Maranhão a uns dez quilômetros de onde estávamos.

Como era meu caminho de retorno, dei-lhe uma carona na camioneta do Exército e, ao nos despedirmos ele falou comovido:

- Muito obrigado moço, muito obrigado! Eu estava perdido e com sede e encontrei quem me oferecesse água e me trouxesse para casa, Deus existe!

Passados mais de quarenta anos, ainda fico comovido ao me lembrar desse fato, pois era a segunda vez que eu ouvia essa afirmação.

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Filosofia de botequim:

Ajuntar macho com fêmea é perigoso até porca com parafuso, em algum momento eles irão se enroscar.