Escândalo!

Fomos, eu e Alton Steele, até a Exposição de Verão na Burlington House, Piccadilly, centro de Londres. Não sou do tipo que frequenta exposições de arte, mas Steele conseguiu me convencer do caráter extraordinário de uma obra ali exposta.

- Wilbur, você precisa ver esse quadro... tem uma mulher nua nele!

Ergui os sobrolhos.

- O que há de mais numa mulher nua, num quadro? Há séculos que os pintores as retratam desta forma...

- A mulher está dançando... - prosseguiu Steele.

- Oh! Que fantástico! - Ironizei. - Uma ninfa ao luar, uma bailarina clássica, apenas com as sapatilhas?

- A mulher está dançando nua, ao som do jazz! - Exclamou ele.

Cruzei os braços.

- Como assim... agora os quadros têm trilha sonora ao vivo, como no cinema?

- Está no quadro... há um músico de casaca e cartola tocando saxofone, e a mulher está de olhos fechados, dançando como se estivesse em transe! - Descreveu ele, dando pinceladas no ar com as mãos grandes.

- Mas como pode saber se é jazz que ele está tocando, Steele? - Indaguei, curioso. - Não poderia ser, digamos, a "Rapsódia para Saxofone Alto", de Debussy? Já que o músico está de casaca e cartola, soa mais lógico...

Steele fez uma pausa dramática, antes de declarar:

- Wilbur... o músico é negro! O que diacho acha que ele está tocando?

* * *

O calendário registrava o ano de 1926, e o jazz estava na moda na Inglaterra, bem como garotas de cabelo curto e saias pouco abaixo dos joelhos. Um escândalo. Que o jazz fosse tocado quase que exclusivamente por negros norte-americanos, não contribuía para reduzir os temores da sociedade inglesa quanto aos presumidos efeitos deletérios daquela música frenética e sexualizada, sobre a moral das jovens. E agora essa, do quadro, praticamente materializando o que todos comentavam de forma mais ou menos velada. Nem foi surpresa que, ao chegarmos à Burlington House, deparamos com uma fila imensa para entrar. Como estávamos no meio de uma greve geral, que começara alguns dias antes, havia mesmo muita gente ociosa.

- A palavra se espalhou - avaliou Steele, esfregando as mãos. - Todos vieram ver a pouca-vergonha!

Esse era, basicamente o sentimento vigente entre os que estavam na fila. Uma mulher branca, dançando nua, OK. Mas uma mulher branca, nua, dançando ao som do jazz executado por um negro... não! Inimaginável! Todos queriam se certificar com os próprios olhos, de que algum artista degenerado realmente produzira esta composição de tamanho potencial ofensivo.

- O rei em pessoa veio à exposição - assegurou uma mulher gorda à nossa frente. - Eu também quero ver!

Que o rei Jorge V viesse à uma exposição em Burlington House, não era novidade. Mas, desta vez todos sabíamos o que ele havia vindo ver. Entramos, finalmente.

- Bem, onde está o tal quadro do jazz? - Indagou Steele, acercando-se com outros visitantes de um atendente, no hall de entrada.

O homem ergueu as mãos, como que para impedir que chegássemos mais perto.

- Não está mais! A reação negativa foi muito grande... depois de cinco dias, o próprio pintor veio aqui e levou o quadro embora.

Ficamos sabendo posteriormente que fora o próprio Colonial Office quem pedira a retirada da peça polêmica, por "atentar contra os interesses do Império Britânico": poderia passar aos súditos nativos a impressão equivocada de que relações inter-raciais eram bem toleradas.

- Mas no lugar dele, vocês poderão ver um magnífico retrato de Lady Diana Manners, pintado por James Jebusa Shannon - acrescentou ele, em tom de desculpas.

- Lady Diana está nua? - Indagou acidamente Steele.

- Bom Deus! Claro que não! - Retrucou ofendido o atendente.

- Então, não interessa... - replicou Steele, dando meia-volta. O atendente o interpelou, contudo.

- Espere! Para quem quiser ao menos ter uma ideia de como era o quadro, ainda há uma fotografia dele na exposição.

Sem muita opção, fomos ver a tal fotografia. O grupo de visitantes fez um semicírculo à volta dela, em silêncio. Finalmente, Steele comentou em voz alta:

- Quer saber? Esse quadro não tinha nada de mais... a mulher está de perfil, e o músico sequer está olhando para ela!

Era verdade. O músico negro tocava seu saxofone ignorando completamente a melindrosa nua em transe, ao seu lado. Seus olhos estavam voltados para nós: a plateia.

- [23-06-2019]