A bola branca de futebol

Raramente recebia presentes. Um deles, no entanto, lhe marcou para sempre: uma bola de futebol, linda!! de couro branco e junto com ela um pito e uma bomba para encher; suprassumo das novidades na época. Sorri de satisfação ao perceber a inveja dos amigos que se apresentaram como num passe de mágica para o jogo inaugural. Num primeiro momento o presente era um trunfo para o protagonismo sonhado; já sozinho e passada a euforia inicial, a lembrança de que jogava mal, perna-de-pau como era chamado, o deixa em pânico.

A noite abafada prenuncia uma trovoada que nunca vem e a bola sobre a mesinha em frente à cama o transporta para a realidade. Não consegue dormir e nos espasmos do sono agitado se vê ovacionado pelo grupo no pequenino campo de várzea seca e poeirento. Seus amigos comentam sobre seu preparo físico e sua habilidade em driblar e fazer gols. No amanhecer do dia seguinte, o sonho bom se transforma em pesadelo. Sem alternativa respira fundo, levanta lentamente, escova os dentes, veste o calção e senta para o café, emburrado e sem fome.

Todos na mesa estranham atitude tão diferente da animação da véspera - o que houve? Por que não come nada? Saco vazio não fica em pé. Não vai inaugurar a bola com seus amigos? Já estão aí na frente, faz tempo -. Seu coração dispara e sem opção se dirige para o grupo impaciente que o espera ansioso. Se gruda à bola branca como se ela fizesse parte do seu corpo e, lá no fundo, pressente que outro tipo de trovoada está por vir.

A ida para o campinho de terra é uma alegria só, para os amigos diga-se de passagem. No trajeto jegues carregados com pesados vasilhames de madeira são conduzidos com precisão por vendedores de água potável. Na passagem pela represa procura se concentrar no vai e vem das cabaças alisando a superfície da água na vã tentativa das mulheres para coletar o líquido um pouco limpo.

Se posiciona à frente do grupo tenso e agarrado à bola branca com ambas as mãos. Os novos amigos íntimos o acompanham ansiosos para terem aquela maravilha nos pés. Na divisão do time, o primeiro impacto: os dois grupos resistem em o escolher. Se agarra à bola mais ainda. Sem escolha, no último suspiro, um dos grupos chama o dono da bola. Alguém apita e o jogo começa.

Corre pelo campo como um desesperado querendo mostrar bom desempenho ou, quem sabe, na tentativa de proteger a bola. Seus pés desnudos e desacostumados com o chão de terra do campo de várzea, doem. Cansa, mas não se deixa abater – preciso esquecer o cansaço e a dor nos pés, pensa - corre para cima e para baixo exaurindo todas as forças sem que lhe deem um passo sequer. É ignorado apesar dos gritos para que lhe passem a bola, nada acontece, é um fantasma no campo. O tempo demora a passar, está exausto, com os dedos feridos e ensanguentados.

Subitamente, por um erro de passe, a bola chega aos seus pés e, sem pensar, instintivamente, mas com muita raiva e sangue nos olhos pega a bola com as mãos e sai do campo em disparada. Tropeça nos buracos do chão de terra, quase caindo, mas segue em frente a tempo de ouvir os gritos - volta aqui perna de pau, filhinho do papai, gordo de merda - continua correndo, coração acelerado, com medo de estar sendo seguido e em completo estado de exaustão física, mas feliz.

FCintra
Enviado por FCintra em 20/08/2019
Reeditado em 28/04/2023
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