O assassinato do sol

“Povoado do Camisão”, "Freguesia de Sant’Ana do Camisão", "Vila de Sant'Ana do Camisão" estes eram os nomes da vila, posteriormente cidade de Ipirá, cuja palavra significa em tupi-guarani "Rio do Peixe”. A escolha do nome não poderia ser mais equivocada, pois a água do rio que passa no município corre por apenas uns poucos dias após as chuvas de verão. Muitos anos atrás, a falta de água encanada dia sim, dia não era sempre acompanhada de muita aflição e os moradores se desesperavam quando percebiam que os reservatórios estavam prestes a secar - Que é que eu faço sem água meu Deus? Não chove uma gota há meses – era o que se ouvia nos quatro cantos da cidade.

Nos períodos de seca mais prolongados o medo da falta água para cozinhar e para tomar banho era assunto presente em todas as conversas; não se falava em outra coisa. Apesar da reza das beatas, os animais continuavam morrendo no pasto e faltava comida e água para matar a fome e a sede da população. Dia sim, dia não, se via o cortejo triste e conformado de “anjos” em minúsculos caixões brancos cobertos por flores murchas colhidas dos jardins ressequidos. Além da família poucas pessoas acompanhavam essa trágica procissão enfeitada por sombrinhas coloridas para proteção contra o sol.

A secura do ar e da terra, a luminosidade excessiva e o calor inclemente provocavam efeitos colaterais nas pessoas e, muitas vezes, completo desvario. Seu Vicêncio, cidadão conhecido na cidade, apesar de não ter um palmo de chão, não plantar nem criar, se solidarizava com os agricultores e donos de terras circulando pela cidade sob o sol causticante com um guarda-chuva embaixo do braço ou, rodopiando ao estilo Carlitos, a olhar as poucas e raras nuvens no céu. Seu único assunto eram as variações do tempo.

- Acho que vai chover, está muito abafado, sinto que de hoje não passa; a pedra do meu quintal amanheceu molhada, minha coluna não para de doer e a direção do vento não deixa dúvida que vai cair muita água - . Dizia e repetia tudo isto a quem cruzasse com ele; poucas pessoas lhe prestavam atenção. Com frequência se valia de informações de outrem e se apressava em divulgar. - Seu Martinho dos Currais disse que ouviu cabras tossindo e espirrando a noite toda; é sinal de que o tempo está mudando. Se Deus quiser a chuva cairá ainda esta noite. Já notaram como o sol está nascendo vermelho? É chuva que está vindo. Não tem erro. De hoje ela não passa -.

Quando o vento desviava a direção da tal nuvem escura Seu Vicêncio se desesperava, mas no dia seguinte tudo voltava a ser como antes. Suas andanças pelas calçadas da cidade reiniciavam com força total: - não foi ontem, mas no dia de São José, com certeza teremos chuva e o inverno, se Deus quiser, será chuvoso e as trovoadas de dezembro e janeiro hão de vir, com a ajuda do Senhor -. E assim Seu Vicêncio circulava todos os dias pelas calçadas fazendo suas erráticas previsões climáticas.

O sol continuava formando labaredas de calor que saíam do chão seco entorpecendo o olhar ao se fixar o horizonte. Muitos chegavam a abandonar suas casas pois não tinham o que beber ou comer. Para conseguir um pouco de água algumas mulheres se aventuravam a caminhar por léguas com potes nas cabeças a rezar e a pedir a Deus por um poço barrento. Os dias eram longos, esticados pelo sofrimento. O corpo e a mente sucumbiam ao desânimo e à desesperança. Num desses períodos assolados pela seca, um incidente repentino abalou a calmaria da cidade ainda no seu despertar, mas com o sol já a pino:

Um movimento de gente e trotes de cavalos acordou os moradores que correram para as portas e janelas atordoados e/ou curiosos - O que é isso? Por que essa gente toda na rua a essa hora? Se perguntavam -. As mulheres ainda de camisola ou com robes colocados às pressas e os homens de pijamas e até mesmo de cuecas cruzavam a praça até o pátio do fundo da igreja. Um círculo de gente começou a se formar e, de longe, se podia avistar e ouvir Seu Vicêncio aos berros com uma espingarda em punho, em direção ao sol. Gesticulava muito e em lugar do guarda-chuva habitual, apontava a arma para o alto gritando frases desconexas ao léu.

O círculo de gente só aumentava formando um paredão cada vez mais largo e cuja movimentação lembrava uma grande cobra em movimento. As pessoas se empurravam para chegar à linha de frente e, assim, poder presenciar o melancólico episódio. Algumas tentavam dissuadi-lo sem nem bem saber direito o motivo da crise. Outros se acotovelavam perguntando a um e a outro do que se tratava. Outros riam e debochavam da situação. A roda aumentava a cada momento e cada um tinha sua própria versão sobre o caso: - ele vai se matar. Em quem vai atirar? Coitado, cada dia mais louco, o sol queimou seus miolos -.

Enquanto se especulava o porquê da espingarda em direção ao sol se escutou uma série rápida e contínua de tiros, que mais parecia a rajada de uma metralhadora, e o corre-corre das pessoas tropeçando umas sobre as outras, muito pânico e muita gritaria por todos os lados. Passado o susto e com a roda agora desconstruída, se pôde ouvir o choro e os lamentos do Seu Vicêncio com sua velha espingarda jogada sobre o chão de barro: - “preciso matar o desgraçado do sol: não aguento mais ver tanto sofrimento”. Um silêncio repentino se estabeleceu após seu desabafo angustiado e, como por encanto se seguiu uma quietude irmanada e solidária da turba antes tão hostil, quietude esta só rompida pela ovação ao velho Senhor que, por um triz, não assassinou o astro rei.

FCintra
Enviado por FCintra em 04/10/2019
Reeditado em 10/04/2023
Código do texto: T6761188
Classificação de conteúdo: seguro