*O Engraxate

O Engraxate

Desbravando esses brasis, conheci Nicolau, em Carolina, cidade ao sul do Maranhão, onde morei e trabalhei por alguns anos, em meados da década de 80 e onde fui feliz.

Nicolau era um rapaz de boa índole, cumpridor de suas obrigações, muito boa gente e, acima de tudo, prestativo e bem-humorado. Tirando-se todos os defeitos, o que sobrasse depois de uma boa peneirada, dava para aproveitar!

Certa vez, estávamos atravessando a ponte de madeira sobre o rio Balsas, em Balsas-Maranhão. A faixa de rolamento da ponte só comportava um veículo de cada vez, de forma que, quem primeiro adentrasse a ponte, teria preferência. Por sorte que a pista estava livre para nós, só que, em dado momento, Nicolau que dirigia o carro, engatou uma marcha à ré, para nossa total surpresa, e acelerou de volta. Questionado, ele respondeu:

– Vocês não estão vendo que vem um cachorro no meio da ponte em nossa direção? Eu já voltei por causa de um bêbado, posso muito bem retornar, por causa de um cachorro! E era verdade! Coitado do cão, com que dificuldade ele andava, tendo a pata traseira avariada. Tivemos que esperar ele passar por nós, para depois prosseguirmos. Esse era Nicolau!

Quando garoto, era cheio de artes, presepeiro e cheio de não me trisque. No entanto, sempre foi trabalhador, gostava de ter seu dinheirinho. Carolina era uma cidade pequena, sem muitas oportunidades e encravada no meio do nada, longe de tudo. O rio Tocantins era a via, por onde escoava a maioria das produções. Nesse ambiente, Nicolau, que tinha uns dez anos de vida, improvisou uma maleta, comprou alguns insumos e passou a sair de porta em porta, gritando na rua, em busca de clientes:

– Engraxaaaate...! Quem quer engraxar sapaaaaatos...?

E assim ia se safando!

Seu ponto favorito era a agência de ônibus da empresa Transbrasiliana, que era, ao mesmo tempo, a tosca rodoviária da cidade. Mesmo com pouco movimento e cobrando CR$3,00 (três cruzeiros) por cada par de sapatos, conseguia se virar.

E foi numa dessas, que aconteceu o motivo dessa narrativa.

Era dezembro de mil novecentos e não me lembro, inverno forte, estradas sem revestimento, mais buracos que estradas, atoleiros sem contas. Viagens por aqueles confins de mundo em qualquer sentido era um desassossego de vida, era uma epopeia de chateações. A empresa que monopolizava a linha não podia colocar ônibus novos, porque a estrada não permitia. Portanto, era normal se ver carros de todas as marcas e tipos atolados até o semieixo. As duas cidades mais próximas eram Estreito, a 100 quilômetros de distância, e Riachão do outro lado, também a 100 quilômetros, sem nada mais no meio das duas.

Antes de Riachão, havia o ‘ronca’, uma chapada de areia fofa, tormento dos mais experientes motoristas. Por causa desse trecho de estrada, foi que surgiu a expressão: “Do tempo do ronca”. Os passageiros eram obrigados, pelas circunstâncias, a ajudar a desatolar os ônibus. Até então, não havia ponto de apoio para troca de motoristas. Nessas viagens longas, dois motoristas se revezavam ao volante e ainda serviam de cobradores, recebendo o dinheiro dos passageiros que embarcavam ao longo da estrada. Coitados! Eram tão vítimas de aborrecimentos, quanto os passageiros por eles transportados. Uma viagem de Floriano-PI a Carolina-MA, cujo percurso era cerca de 600 quilômetros, se fazia em vinte e duas horas no verão . No inverno, nem se faziam previsões.

De súbito, eis que chega um ônibus na rodoviária, de onde vão descendo passageiros de semblantes mal dormidos, extenuados e chateados, devido aos solavancos da viagem. Dentre eles, havia um senhor calçado num sapato Vulcabrás todo sujo, impregnando de lama ressecada. Era um bom momento para o engraxate oferecer seus serviços.

Vulcabrás era uma marca de sapatos masculinos, de couro e com solado de borracha vulcanizada. Era um calçado que vencia a gente pelo cansaço, pois não se acabava nunca. Tinha uma durabilidade incrível e pegava brilho até com cuspe.

Acontece que o passageiro parecia estar com pouco dinheiro e não cedia a pressão do garoto, por mais que este insistisse em lhe engraxar os sapatos. Em dado momento, já aborrecido com a inconveniência do menino, o homem lhe disse:

– Olha, você já passou dos limites. Eu não quero engraxar sapato algum. Se você quiser engraxar de graça, então engraxe, o problema é seu!

Para surpresa geral, o menino respondeu que engraxaria de graça, sim. E ninguém entendeu o porquê de tanta determinação para executar aquele trabalho.

Então, o homem colocou um pé sobre o suporte da maleta, e logo, o garoto iniciou o trabalho. Primeiro, retirou, cuidadosamente, a lama ressequida. Em seguida, limpou, passou a pasta, escovou, fez o “vai e vem” com a flanela e álcool, até o sapato exibir um brilho exuberante. Feito isso, o engraxate, muito delicadamente, retirou o pé do cliente do suporte, guardou seu material, fechou a maleta, agradeceu e saiu, ficando o tal homem com um dos sapatos sujo. Desesperado, o freguês começou a gritar pelo menino, dizendo que faltava engraxar o outro pé...

– Negativo! - respondeu Nicolau - Eu disse que engraxaria de graça só um sapato. O outro eu só engraxo se o senhor me pagar dobrado e adiantado. Ou o senhor pensa que sustento os meus filhos trabalhando de graça para os outros?

O riso foi abundante na rodoviária. Diante daquela situação única na vida, o homem não teve outra saída, a não ser pagar adiantado os CR$3,00, para que o trabalho fosse concluído.

Nicolau, menino arisco, hoje homem feito, um dos bons amigos que a vida me contemplou e que, por outras razões, o tempo nos separou. Oxalá nos reencontremos algum dia! Por via das dúvidas, é sempre prudente andar com R$3,00 no bolso...

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 08/11/2019
Reeditado em 22/02/2022
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