O pintassilgo

Os meninos brincavam acocorados no quintal; Abel, o mais velho, riscava a terra com um graveto enquanto Davi, o mais novo, tentava adivinhar a qual bicho pertencia aquela forma. Abraão enrolava seu fumo na palha de milho sentado na rede, o suor escorrendo pelo corpo queimado de sol, o sol do meio dia, o cheiro do alho fritando na banha de porco, a mulher que dali a pouco surgiria na porta anunciando o jantar. Pensava: a vida é boa, apesar da labuta de sempre. Sorria de lado vendo os filhos brincando, quem diria, já daquele tamanho, mais um pouco seriam homens feitos, maiores que ele, fortes, com mulher e filhos e estudo e uma condição muito melhor. E a esposa ainda era tão linda, ninguém diria que já passava dos quarenta e poucos, a pele morena, os seios e bunda fartos marcando o vestido, aquele vestido que sempre balança quando ela vai estender as roupas no varal. Tão linda a esposa, tão bons e obedientes os filhos, Deus não poderia ter dado felicidade maior que aquela, não ousava pedir mais nada em suas orações, salvo que Ele protegesse sua família, agradecendo sempre, mesmo quando as coisas não iam muito bem e a chuva faltava e as plantações não vingavam. Ficou assim olhando os meninos, pensando, pensando, as mãos ágeis confeccionando o cigarro, o futuro logo ali próspero, próspero, os filhos feitos os diplomas as esposas os netos, quando de repente ouviu as palmas.

-Seu Barreto tá aqui- disse a esposa surgindo na porta.

-Diz pra entrar.

Acendeu o cigarro e esperou que a visita aparecesse. Trocaram os cumprimentos de sempre, Arlete trouxe uma cadeira, a garrafa de café e dois copos. “Ô Arlete, não precisava”, “Que isso, seu Barreto, não é nada”, depois voltou para o fogão, o angu cuspindo o fubá cozido em suas mãos, o feijão borbulhando, o ensopado de frango já no ponto.

-Ficou sabendo?

-Do que, seu Barreto?

-O fuzuê na casa do finado Dias.

Arlete não participava da conversa, mas ouvia. E balançava a cabeça em reprovação. Seu Barreto só aparecia naquelas horas, a do jantar e do almoço, e nunca dizia nada que não fosse em relação a vida alheia, anunciando tragédia dos outros com o mesmo entusiasmo com que se dá uma boa notícia. Era o primeiro a saber das coisas, ás vezes até mesmo antes de elas acontecerem. Não sabia por que Abraão dava assunto praquele tipo, coisa mais feia que homem fofoqueiro não tinha, por ela ele não pisava ali, e se não falava pra Abraão das certas liberdades que seu Barreto tomava quando o marido não estava por perto era porque tinha medo do que o marido pudesse fazer. Tratava bem por tratar, e se o respeitava era em respeito ao marido.

-Pouca vergonha, hein, seu Barreto?

-Pois é. O velho mal esfriou no caixão e já tão brigando por causa de herança.

-Herança?

-Ah, um pedaço de terra, a casa, isso, aquilo. Diz que hoje o fuzuê foi por conta da televisão.

-Televisão?

-É, o genro e a filha do finado Dias foram lá, disseram que só saiam dali com a tv. Aí cê sabe, foi um pega pra capar daqueles!

Abraão balançou a cabeça estalando a língua. Se seu Dias soubesse da cachorrada que seus filhos estavam aprontando por bobagem pouca, morria duas vezes. Desgosto, vergonha, um homem que trabalhou a vida toda e só descansou para morrer pra dar tudo do bom e do melhor pros filhos... E a viúva, coitada? Que não podia tomar partido, porque filho é filho, no meio daquele fogo cruzado. Não demora vai ela, de desgosto, vendo a vizinhança inteira se amontoando pra ver o fuzuê, cochichando. Os filhos devem honrar os pais, e era isso que Abraão ensinava aos seus filhos, que sempre permanecessem unidos, que nunca, jamais, crescessem os olhos nas coisas dos outros, que cuidassem da própria vida e trabalhasse, porque Deus ajuda quem cedo madruga, como dizem. Coitado do seu Dias, que Deus o tenha.

-E como tá a Dona Sila?

-Daquele jeito, né? Nunca teve pulso firme com os filhos, agora fica assim, sem saber o que fazer. Semana passada até no hospital ela foi parar, teve um treco no meio do fuzuê, diz que um levantou a faca pro outro, o troço foi feio.

Abraão deu outro trago no cigarro, balançando outra vez a cabeça.

-É por isso que eu educo meus filhos, ensino eles que a família é mais importante que qualquer coisa. A gente tem que ser unido, nunca sabe quando vamos precisar do outro.

-Pois é...

Os meninos continuavam brincando acocorados ali no terreiro. Seu Bastos deu um gole no café, falou um pouco sobre o tempo, recusou o convite para o jantar esperando uma insistência que não veio e então se despediu. Arlete se benzeu quando o homem passou pela cozinha, Deus me livre, que esse homem tem uma coisa com ele. Abraão apagou o cigarro e ficou ali olhando os meninos; já anoitecia, os postes da rua se acendiam, uma cigarra começava a cantar. Lá longe o relógio da Matriz badalava seis vezes. Sentia-se grato a Deus por aquelas duas bênçãos que jamais dariam desgosto nem depois de morto, porque os havia criado para seguir o caminho de Deus, para o trabalho, para a união. O pintassilgo ensaiou um canto, um acesso de tosse fez com que Abraão cuspisse uma coisa espessa e esverdeada. Os dois meninos por um momento pararam a brincadeira e olharam para o pai. E como se a vida fosse contrária aos desejos do homem, Davi e Abel, adivinhando a doença ainda oculta do pai, pensaram ao mesmo tempo: Papai morrendo o Pintassilgo é meu. Começava ali o desatino da família, mas como ninguém sabia, jantaram bem e dormiram o sono dos justos. Um novo dia estava por vir, a esposa cuidaria da casa, os meninos aprenderiam na escola e Abraão estaria na roça cuidando das suas coisas para que nunca faltasse nada aos filhos, que jamais trariam desgosto, pois ele os havia ensinado a ser homem e honrar a família, nunca, de jeito maneira, crescendo os olhos para as coisas dos outros, mas conquistando. E o pintassilgo cantava toda tarde instigando os irmãos.