O SER DE NEGRO

Recentemente me perguntaram na Faculdade de Teologia Umbandista quando foi que eu descobri que tinha tomado gosto pela umbanda. Bem, passei a vestir “branco”, na “casa” do Pai Ademir do Carmo -Templo de Umbanda Caboclo Tupy da Aldeia e Pai Thiago da Senzala, na cidade de Guarulhos, em São Paulo, no inicio do ano de 2002. A coisa aconteceu quase que por “acidente”. Num determinado sábado, após o almoço, minha esposa me perguntou se eu não poderia fazer um favor a uma nossa vizinha, disse que sim, então ela me pediu para levar a Minerva até a cidade de Guarulhos, porque ela tinha um compromisso e o carro da sua filha não tinha retornado da revisão. Informei-lhe que tudo bem, e na hora marcada a Minerva chegou e fomos. Era bem pertinho da nossa casa aonde a vizinha queria ir. Lá chegando, estacionei o carro e logo verifiquei, se tratar de um Terreiro de Umbanda. O meu compromisso era só de levá-la, mas por razões desconhecidas, resolvi ficar e assistir o rito. Confesso que o meu coração batia acelerado. Estava meio que desconfiado e com um certo medo. O lugar era limpo em todos os aspectos. Tudo branquinho e muito alvo. Um povo bonito e solicito. Pareciam que sorriam com os olhos. O terreiro inteiro era arborizado e tinha vários vasos com flores. Aqui e acolá, “casinhas” com “santos”. O congá propriamente dito era belo, possuía um altar coberto com toalhas de linho branco e tinha imagens de “santos” católicos. Atrás do altar, uma espécie de cachoeira, cujo barulho da água corrente nos reconfortava. No centro do altar uma bela e grande imagem de Jesus (Oxalá), que se fixou em mim ou eu nela. O certo é que fui me acalmando e em determinado momento pareceu-me que aquela imagem me atraiu para si e quando eu estava no meio dos seus braços, com carinho me deu um pequeno coque (cascudo), e me abraçou com ternura. Quando os médiuns, todos de branco, entraram e se posicionaram à direita e a esquerda, deixando um espaço no meio do salão, a imagem de Oxalá, com os braços abertos parecia que abençoava a todos e transformava o lugar num imenso céu. O que eu via era uma grande luz. O terreiro realmente se transformara num imenso céu! O “pai de santo” surgiu, pegou uma espécie de sininho e tocou. Quando os atabaques começaram a tocar, todos cantaram uma linda “canção”, uma espécie de hino. O cântico e a música operaram em mim uma grande transformação e comecei a chorar. Um choro de leveza, de elevação d’alma, e aquilo me reconfortou. De repente percebi que estava na minha casa, no meu lugar, com o meu povo, e a partir daquela data comecei a freqüentar a Umbanda. Em pouco tempo já era neófito, cambono e filho de “santo” com “feitura” – amacy.

Bem, na realidade já nasci filho da “NAÇÃO”. O meu avô materno e o meu padrinho de batismo (católico), eram umbandistas e possuíam nas suas fazendas, “Roças” de candomblé. Do meu avô não lembro nada, mas a minha mãe diz que ele era um mestre catimbozeiro muito conceituado na região e que era comum chegar indivíduos para tratamento em adiantado estado de demência. Que vinham amarrados de corda, e que nesses momentos o meu avô simplesmente dizia: “solte o homem!” E quando as cordas eram desatadas, o individuo caia aos seus pés. Quanto ao meu padrinho de batismo, filho da parteira e curandeira, Mãe Vitalina, me recordo vagamente. Lembro-me dele, na fazenda do seu pai Jacó, sentado num banco de madeira, arrodiado de mulheres, bordando lindos e alvos panos brancos.

Toda essa reflexão me fez lembrar um episódio muito interessante e que eu não tinha lhe dado o devido valor. Numa determinada manhã dum sábado, eu todo prejudicado espiritualmente, um "SER" todo de "PRETO", surgiu no meu quarto. Naquele momento o meu quarto estava invadido por seres diversos e estranhos. Ele surgiu, vindo da sala para o quarto, usando roupas pretas, inclusive uma capa da mesma cor. Quando surgiu, os demais sumiram. Ele olhou para mim, passou por mim, foi até a janela e depois, sem pronunciar uma única palavra rumou em direção à porta. Naquele instante, desesperado, talvez, gritei-lhe: Não vai falar nada não? Chegou, me olhou com essa cara de desprezo e vai embora? Como ele continuou a andar, em prantos gritei ofensas e dizia: Quero saber! Quero saber o que está acontecendo comigo! Mandei uma carta ao “Meu Pai” (Deus), Ele lhe enviou e você vai embora sem nada dizer? Por que veio então? Nessas alturas, ele estava parado na porta do quarto, com o pé esquerdo já saindo, virou-se sobre os ombros, somente a cabeça, e apontando os dedos médio e indicador da mão esquerda disse: “quer saber é”!!! Dizendo isso, ele apontou para mim os dedos como se fosse uma espingarda de dois canos e me transportou para uma dimensão desconhecida. Nessa viagem passei por varias situações e mundos novos, quer dizer, velhos, pois fui remetido ao passado, ao passado das minhas existências. Vi famílias, coisas e lugares que já me pertencera. Pude ver também aonde havia perdido o rumo naquelas vidas e nessa atual. Aquele "SER" de "PRETO", que na minha ignorância era uma ilusão do personagem Batman, estava me conduzindo por dentro de mim mesmo. Foi uma viagem sacrifical, onde tive contato com seres do passado que eram agora entes queridos. Presenciei cenas de assassinatos e estupros. Passei por etapas profissionais, por casas conhecidas em lugares estranhos. Presenciei reencarnações e voltei. Voltei ao meu mundo atual e conturbado que estava vivendo. Ali foi a minha verdadeira iniciação à Umbanda. Quando sai daquele torpor, imediatamente pulei da cama, vesti uma roupa e nunca mais voltei para àquela casa onde levava uma vida promiscua de homem separado e largado da vida. Depois desse episódio, passou-se algum tempo e ele mesmo, o “Batman” – em conversa reservada no templo da OICD, me disse que havia me recolhido e me conduziu para a “casa” do seu “Compadre Marabô” – Templo do Pai Ademir do Carmo, onde eu deveria me banhar e assim me transformar no "2x1 (dois que é um...) Esse foi o primeiro contato físico-visual que tive com um "SER ENCANTADO".

Somente agora e já cursando a Faculdade de Teologia Umbandista é que me dei conta de já ter nascido filho da “Nação”. Como disse, o meu avô era candomblezeiro e o meu padrinho também. O meu avô, João Eleutério, possuía um "barracão" num lugar chamado Kaatongo (Quilombo localizado próximo ao Município de itajuípe). Uma comunidade agrícola que sobrevivia da lavoura do amendoim e da produção da farinha de mandioca. Eram todos negros e viviam isolados. Conta a minha mãe que o meu avô atendia a todos da redondeza que precisavam de tratamento espiritual e ajuda material. O meu avô, além de curandeiro era um prospero fazendeiro, e que o povo o procurava para ser curada desde mordida de cobra, espinhela caída, mal olhado, males de amor, afastamento de assombração e até de feiúra. Para esse mau especificamente, ele ministrava um banho muito especial: folha de pequi, malícia com espinho, guiné, sabugueiro e palha do ninho de anum. Fervia-se tudo numa panela de barro e depois se banhava dos ombros para baixo.

Na casa do Pai Ademir, na primeira gira de “esquerda” na qual estava participando e na condição de cambono auxiliar, aconteceu um fato revelador. Quando circulava pelo salão (congá), agarraram-me pelo braço e me puxaram. Voltei-me e me deparei com um senhor que com voz suave me disse: “Não se lembra mais de mim?” Eu, meio que assombrado, nada respondi, e aquele homem com voz feminina continuou falando: “Eu sou aquela da fronteira. A que lhe deu a loira das sete encruzilhadas”. O meu pensamento voou e lembrei-me do terreiro na Bolívia. Na consulta passei com uma linda loirinha que, entre outras coisas me disse que me daria uma loira e que essa loira seria a das sete encruzilhadas, no final da consulta perguntei o seu nome e ela disse chamar-se Rainha Maria Molambo. Tempos depois no terreiro do pai Ademir incorporei uma entidade “feminina” que deu o nome de Dinorah. Tudo bem! O tempo passou, fui me desenvolvendo na arte da incorporação e hoje em dia a Senhora Dinorah é a minha protetora espiritual, ocorre, que a Pomba-gira Maria Molambo não se esqueceu de mim, e quando tenho necessidade de dá passes mediúnicos é ela quem o faz, com a “permissão” da Dinorah. E como isso acontece? É simples, eu acho. A Dinorah “baixa”, se incorpora a mim, me gira, sai e entra a operadora, a rainha Maria Molambo.

Estou de licença do meu terreiro por causa da faculdade de teologia que estou cursando, então, nas giras fico auxiliando, cambono um, limpo o chão, busco banco para idosos, despacho as “coisas”, etc.

Certa feita estava na gira e senti a sua presença. Como era gira de passe procurei evitar a incorporação, fiquei circulando pelo salão, até que a coisa ficou insustentável. Quando estava próximo aos atabaques, pumba! Incorporei. Era a Dinorah. A Dinorah é sutil, delicada, não fuma, quase não conversa, tem modos refinados, simplesmente estala os dedos e levanta docilmente a mão direita. Levou-me até o meio do salão, sorrio com os olhos e foi embora. Acabara de sair, e a Maria Molambo me pegou. Entrou, deu uma sonora gargalhada e foi-se tão bruscamente que cai de bunda no chão. Entendi perfeitamente o seu recado. Ela me mostrou que a importância estava com ela e não comigo, um simples mortal cheio de vícios. Vícios da carne, da vaidade, orgulho, do medo, da ignorância, da soberba, do egoísmo e assim por diante. Qual o direito eu detinha para impedi-la de se manifestar e nos agraciar com a sua presença? Nossa! Aquilo doeu. Prometo que nunca mais agirei daquela forma.

O meu Vô Eleutério morreu quando eu ainda era criancinha e o meu padrinho Didi, quando eu tinha de três para quatro anos. As suas lembranças têm sido constante nos ritos da OICD.