DESENTENDIMENTO

Nos dias atuais, quando as famílias são cada vez menores e as empregadas domésticas cederam o lugar para as diaristas ficou bem mais difícil acontecer, mas noutros tempos era comum haver pessoas que se dedicavam, por toda vida, a serviço da mesma família por várias gerações.

Ainda adolescentes essas mocinhas eram contratadas ou para ajudar na cozinha ou para cuidar dos pequenos e quando esses cresciam e se casavam, a sua antiga babá era levada junto para cuidar dos filhos e depois dos netos até que a morte as levasse.

Dona Euterpe foi uma dessas pessoas.

Tinha menos de quinze anos quando foi contratada pelo pai de dona Beatriz, avó da mãe de minha noiva, para ser babá dela quando estava aprendendo a andar.

O velho era desembargador, dizem que era possuidor de vasto conhecimento e amante da cultura grega. Daí ter colocado o nome da musa “doadora de prazeres” na meninota que fora contratada e que, pelos bons serviços, tornou a vida deles bem prazerosa.

Depois disso ninguém mais soube dizer o verdadeiro nome dela.

Generosa em todos os sentidos estava acompanhando o desenvolvimento da quarta geração da família Silva Andrade e, fatalmente viria morar conosco depois do nosso casamento, como uma espécie de dote, mas um acontecimento inusitado mudou completamente o curso da história.

Maria, minha noiva, estava fazendo o segundo ano de medicina e trouxe para casa as seringas e tubetes com anticoagulante para a coleta de sangue que seria utilizado na aula prática de análise bioquímica.

Claro que dona Euterpe foi também requisitada para o fornecimento do material.

Na mesma semana, chegaram os envelopes lacrados com os resultados.

Família reunida, todos vendo e comentando os índices de todos quanto ao tipo sanguíneo, à glicemia, triglicérides, ácido úrico, colesterol total, LDL e HDL contagem dos glóbulos vermelhos, dos diversos tipos dos brancos, das plaquetas, etc.

O resultado de dona Euterpe era de fazer inveja aos adolescentes da família.

Apenas o colesterol LDL estava alto o bastante para interferir no balanço com o HDL e Maria, quando estava explanando sobre os resultados, elogiou o desempenho do organismo da dona Euterpe, mas fez a ressalva quanto ao colesterol alto.

Com lágrimas escorrendo pela face enrugada, dona Euterpe retirou-se da sala.

Mais tarde disse a dona Virgínia, minha sogra, que ela iria embora daquela casa, que ela nunca tinha sido tão humilhada em toda sua vida.

Como é que a menina Maria teve a coragem e o desrespeito de dizer na frente de todo mundo que ela tinha colesterol alto?

Isso não é coisa que se diga sobre ninguém, muito menos sobre uma pessoa na idade dela e que sempre teve conduta irrepreensível.

Essa ofensa e a vergonha por que passou, ela jamais iria perdoar...

Não adiantaram as explicações nem as súplicas para que ela reconsiderasse da decisão.

Dona Euterpe foi morar num asilo e nunca mais voltou.