Velha vida

Mãos enrugadas à espalmar um centenário em vida. As mãos ali, quase imóveis, sobre a cama que mais parecia vazia. Os filhos e os netos e até os bisnetos a lhe visitar, a correr no entorno e a gritar e falar e falar. Um cano ao nariz que nem mais sentia, as fraldas, os remédios, as feridas. Dores não tinha, nem fome, nem manias. O corpo todo amortecido. Os movimentos sucumbiam, apenas os olhos, teimosos, a insistir com a vida. Mas a memória ardia. Parecia um grito ecoado que explodia, lhe tomava o corpo todo, por dentro, por debaixo, por cima. A memória era o que ainda tinha. Lembrava do cheiro de cada detalhe, dos gestos nobres da irmã Maria, da violência que sofria, especialmente do pai, que jazia, e do marido, também falecido. Da costura à maquina ouvia o rufar das agulhas, fervorosamente a pregar um botão à linha, sua tarefa preferida. Era conhecida como costureira Gina. Os partos ainda sentia: as dores, os enjoos, o cansaço, a azia. A parteira quando lhe amparava o filho. Sempre a mesma. Dona Jovita, dos olhos negros, do olhar mais triste que o povoado conhecia. Lembrava dos filhos que viviam, dos já idos, dos vizinhos. Da falta de comida, que há muito havia resolvido. No criado-mudo, a imagem de Virgem Maria; das rezas infinitas em terço, das missas de domingo. Do trabalho duro, da lavoura, da faxina, dos cânticos enaltecidos sob o sol à pino. Da roupa a lavar no rio, da água a puxar, pra dar de beber e banhar. Lembrava das tantas e tantas vezes que na vida chorou. O luto que enlutou, depois do marido morrer. Lembrava tudo, mas o corpo não podia. Não podia mais o corpo. O corpo que padecia, aquele corpo, velho, vivido. Um corpo aflito. Um corpo que não morria.