QUE SERIA DE NÓS SEM OS AMIGOS?

Este texto é uma versão romanceada de uma brincadeira que fizemos com meu amigo Kondrat em Guarulhos. Longo, mas engraçado.Coisas de peão de obra.

QUE SERIA DE NÓS SEM OS AMIGOS?

Mais que as pesadas palavras de seu amigo, Eliseu sentiu o tênue olhar de reprovação da esposa dele. O ser humano, embora não dê importância para gestos e atitudes suaves, são justamente estas que calam fundo nas almas sensíveis. Embora um comentário agressivo faça nascer um grau de auto reprovação, gera também um sentimento de mágoa e ofensa que convence o ser criticado de não merecer tanta virulência verbal, mesmo sabendo-se errado. Ao passo que pequenas amostras de sincera decepção calam mais o íntimo e provocam sensação física de estarmos errados. Era esse sentimento que o olhar de Ivana gerava dentro de Eliseu. Sem retrucar as palavras do amigo e baixar seu olhar para a esposa dele, ficou ali observando o chão, o sentimento de culpa roendo seu interior. Nessas ocasiões quem se magoou não quer saber quais as intenções e motivos que acabaram com o equilíbrio emocional, fazendo manchar o conceito que possuem da pessoa objeto de tanta crítica.

Para Eliseu, boas intenções e motivos não faltavam. Nascido em família “remediada”, como falava sua mãe, tivera uma infância sem luxo, mas alegre e enriquecedora. Não lhe haviam faltado carinho, aconchego, incentivo. Crescera vendo seus pais trabalharem e valorizarem cada conquista. Uma geladeira nova, o pagamento da última prestação de um televisor, o nascimento dos filhotes de sua cachorra, a chegada de visitas, as festas, as estórias contadas por seus avós, eram motivos de comemoração. A partida dos avós para o inefável mundo dos mortos, a praga que dizimara as galinhas, o roubo de sua bicicleta, faziam com que nem tudo na vida era alegria. Já adulto, tinha bom senso de valores da vida e conquistara o seu título de doutor em Direito. Tornara-se um respeitado causídico, e, convidado por seus professores, um mestre na faculdade que arduamente frequentara às custas da família “remediada” e seus esforços, trabalhando em qualquer serviço que aparecesse. Durante o curso de formação conhecera Ivana ao socorrê-la de um tombo no pátio de faculdade. Cadernos, canetas, livros, estojo de maquiagem, bolsa, pastas, haviam se espalhado pelo chão como atingidos por um vendaval. Eliseu gentilmente ajudou Ivana se levantar, limpou o joelho ferido com seu lenço e começou a catar os objetos caídos. Como inexplicavelmente sempre acontece, a moça protestou alegando que ele não a ajudasse, que resolveria tudo sozinha. Eliseu, calado, ignorou os protestos da moça e calmamente apanhou tudo. Tentou organizar os papéis, nem mostrou curiosidade ou surpresa ao apanhar a caixa de anticoncepcional e o pacote de absorventes. Colocou tudo em uma mesa da cantina, e após se certificar que a moça estava bem, retomou seu caminho. Foi o início de uma sólida amizade. Eram da mesma classe e passaram a estudar juntos seja na casa dele, ou na república que Ivana morava. Eliseu era namorador, mas em relação a Ivana sentia um forte sentimento de solidariedade, de consideração e preocupação com o bem-estar da amiga. Às vezes, altas madrugadas, estudando, olhava para Ivana e se surpreendia que, apesar da beleza da moça, o que sentia por ela era a mais pura amizade, não se poupava ao explicar um ponto duvidoso da matéria que estudavam e muito menos se envergonhava de pedir que ela lhe explicasse o que ele não havia compreendido. Concluído o curso, cada seguiu seu caminho profissional, mas a amizade cada vez mais forte. Altos papos em botecos, idas ao cinema, trocas de experiências. Ivana apresentou Carlos a Eliseu e deixou claro que estavam iniciando um namoro. Até esse fato foi comemorado pelos dois amigos longe de Carlos. Eliseu vibrou com alegria da amiga, que adquirira novo astral, mostrando sua satisfação ao ver que Carlos era um bem-sucedido empresário, honesto, de boa índole. E a amava.

Passados anos, Eliseu casara-se com Marisa e os dois casais eram inseparáveis. As duas esposas eram grandes amigas e Carlos e Eliseu eram parceiros nas pescarias, viagens ao Mato Grosso, tardes de boteco enquanto as mulheres batiam pernas pelos shoppings da vida. Tudo perfeito para dois casais classe média alta.

- Zeu, preciso falar com você. Liga pra mim.

Escutou a voz inconfundível de Ivana na mensagem do WhatsApp. Após a audiência atendeu ao pedido e efetuou a ligação.

- Fala, Iva.

- Não sei como começar, Zeu. Só posso dizer que você é a única pessoa com que posso compartilhar o que está acontecendo. Podemos nos ver? Por favor, não comente com ninguém.

Eliseu telefonou para Marisa que ainda estava trabalhando e comunicou que não a apanharia. Teria que chamar um carro de aplicativo, pois aparecera um compromisso não previsto.

- Não sei começar a relatar o meu drama íntimo, mas acontecem coisas muito estranhas comigo de um tempo para cá.

- Iva, só vou poder ajudá-la se contar quais coisas estranhas acontecem.

- Você sabe que na quinta feira eu e Carlos completaremos quinze anos de casados. O valor que recebi no caso do magnata Amadeu é suficiente para vivermos muitos anos sem preocupações com despesas e podermos usufruir de muitas coisas que até hoje eram apenas quimeras. Meu drama: Carlos nem imagina esse fato. Continua trabalhando arduamente em sua empresa e, com essa crise, a situação está cada vez mais difícil.

- Iva, isso não é drama, é solução. Onde eu entro nisso?

- Calma, vou lhe contar. Quero montar uma situação na qual Carlos tenha uma grande surpresa. É aí que você entra.

-Bom, até agora não vi nada de estranho. Aliás, eu em seu lugar estaria festejando com Marisa.

A partir daí, Ivana explicou detalhadamente seu plano. Eliseu escutou pacientemente. Meio a contragosto, prometeu participar.

Quinta feira, sete horas da manhã, toca a campainha. Carlos interrompe seu café e levanta para atender. A câmera da porta mostra dois homens de preto com caras de poucos amigos que mostram identidades da Polícia Federal. Abre a porta.

- Carlos Castanhede de Oliveira Passos?

- Sim.

- Podemos entrar?

- Sentem-se, por favor.

O que parecia ser mais graduado que o outro comunicou o motivo dessa visita inoportuna:

-Sr. Carlos, nossa presença por enquanto é extraoficial. Estamos aqui devido a uma denúncia anônima. Damos-lhe a oportunidade de justificar antes de uma formalização acusando-o.

-Minha esposa está fora com meus filhos e retorna hoje. Como ela é uma boa advogada, solicito um prazo de vinte e quatro horas para que ela estude o caso e me comprometo ir até a vossa delegacia esclarecer tudo.

- Lhe daremos o prazo, mas recomendo não envolver sua esposa no caso. Garanto que será pior do que já está.

Carlos conduziu-os até a porta. Totalmente aturdido e completamente perdido em divagações, Carlos lembrou-se do melhor amigo. Telefonou a Eliseu contando o ocorrido e implorando não comentar com Ivana.

- Conheço bem o pessoal da PF e como advogado posso ao menos saber qual o motivo da denúncia.

Passada uma hora, Eliseu retorna a ligação.

- Carlos, lembra da recepcionista Elza do hotel em Mato Grosso? Está grávida e acusa você de ser o pai!

- Ela está louca! Eu apresentei a ela seu atual marido! Sempre a tratamos com carinho, mas isso é um completo absurdo! Logo hoje que comemoro 15 anos de casamento! Por favor, Eliseu, em nome de nossa amizade, adie o meu depoimento. Ivana chega após o almoço e estou com saudades. Não deixe essa maluca estragar tudo! Você me conhece e sabe da verdadeira devoção que dedico à minha família! Jamais cometeria adultério, a Ivana não merece isso. Liga para o hotel.

- Pois é. Ivana e eu havíamos preparado uma surpresa para esse dia tão especial. Mas nem tudo ocorre como prevemos.

Carlos foi trabalhar completamente aparvalhado, revoltado e ansioso para esclarecer essa acusação sem nexo e preocupado com a reação de Ivana, caso ela viesse saber da denúncia. Ivana conhecia a moça do hotel e havia mandado a ela presentes cada vez que Eliseu e Mário viajavam para pescar em Mato Grosso.

Enquanto Carlos trabalhava, Ivana chegou em casa e iniciou os preparativos para uma recepção dos amigos mais íntimos do casal. Atualmente poucos casais heterossexuais chegam às Bodas de Cristal e, sem dúvidas, era uma data a ser bem comemorada.

Iniciada a festa, Ivana notou a inquietação de Carlos, mas não quis perguntar por quê. Chegaram os convidados, e os garçons do buffet contratado por Ivana iniciaram a servir bebidas finíssimas e tira gosto. Nove horas, toca a campainha Ivana abre e entra uma moça visivelmente grávida. Ivana não entendeu. A recém-chegada começou a falar em alto e bom som:

- Carlinhos, como você teve a coragem de me abandonar? Nosso filho vai nascer e você, seu desalmado, não atende meus telefonemas, não mandou mais dinheiro, estou devendo ao médico, os exames todos, fui dispensada do hotel! Arrumei um dinheirinho emprestado e consegui chegar aqui. Eu, a sua Elzinha, seu docinho de coco, a sua moreninha, não aguenta mais de saudades suas! Você me largou em Santo Antônio do Leverger sozinha! Quase fui fazer programa na Boate Crystal!

Momentos do mais puro desespero, todos sem saber o que fazer, constrangimento geral.

Comoção geral na festa, Carlos calado e sem ação, Ivana furiosa, Eliseu totalmente paralisado, todos os convidados de olhos arregalados. A esposa de um desembargador desmaiou, muitos querendo sair da festa. No ar aquele mimimi das pessoas que vivem no mundo de pureza, mas às escondidas geralmente seu comportamento é outro.

O novo toque de campainha soou como se fora uma explosão, causando gritos de surpresa junto com uma expectativa mórbida. Depois daquela tragédia, o que poderia acontecer? Ivana abriu a porta quase aos prantos e entraram dois homens bem arrumados. Carlos quase acabou por infartar. Reconheceu os agentes da Polícia Federal, um deles sem a barba da manhã e cabelos raspados, que Carlos reconheceu logo. O sujeito que parecia o chefe falou:

- Senhor Carlos, sou pai da Elza e vim acertar com o senhor da maneira que tratamos esses casos no Mato Grosso!

Carlos ia quase de ajoelhando quando o sujeito, com um tom pouco mais ameno, completou:

-Além de pai dessa moça correta e maravilhosa, tenho uma agência de mensagens figuradas em Cuiabá. Dona Ivana mandara um convite para Elza por mera formalidade. Mas seu amigo Eliseu insistiu, pagou todas as despesas e acertamos fazer essa pequena brincadeira nessa maravilhosa ocasião da vida desse casal. Declaro que o senhor Carlos é um homem apaixonado por sua família, especialmente por sua esposa, a dra. Ivana. Em momento algum em suas inúmeras visitas ao nosso hotel, teve um comportamento duvidoso. Tanto ele como o dr. Eliseu para nós são exemplo de bons homens honestos e decentes. Inclusive, me apresentaram o Armando, meu genro, que trabalha comigo e está ao meu lado. Parabéns a esse casal maravilhoso. Como proprietário da Agencia de Mensagens Amor ao Vivo vim de Cuiabá para tornar esse evento inesquecível. Portanto esqueçam esse pequeno mal-estar e voltem para a festa!

Carlos imediatamente partiu em direção de Eliseu com uma ferocidade nunca vista, proferindo as palavras acima comentadas. Seguro por convidados, desfiou um rosário de impropérios, até referências à mãe de Eliseu foram proferidas. Ivana, com aquele olhar de reprovação que atingira Eliseu. Aos poucos as coisas voltaram ao normal e o bom humor tomou conta das Bodas de Cristal de Ivana e Carlos. Inesquecíveis.

Paulo Miorim 04/03/2020

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 04/03/2020
Reeditado em 11/06/2020
Código do texto: T6880510
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.