O Velho da luz

À noite, a soturnez da cidade era acentuada com a escassez de luz elétrica, calo no sapato dos moradores, não se sabe se pela tristeza que sempre acomete as pessoas na falta de luz ou se pelo barulho provocado pelo gerador de energia que, dia sim dia não, insistia em não funcionar. Da sala, escuta-se mais uma vez as tentativas desesperadas do Seu Armando para fazer funcionar o bendito, ou seria maldito? equipamento. O cheiro do óleo diesel entra pelas janelas penetra o interior da casa, impregna as roupas e sufoca ao respirar. A casa do gerador, outrora amarelo pálido e hoje empretecida pela fuligem e pelo tempo, ficava logo ali, no outro lado da rua.

Por falta de verbas ou, quem sabe, para embolsar algum, o prefeito adquiriu um motor de segunda mão, de fabricação alemã com capacidade de 200 kVA, motor a óleo diesel com usina termoelétrica e gerador, com o propósito de substituir o antigo que teimava em falhar apesar dos esforços do Seu Armando, técnico autodidata responsável pela iluminação da cidade há longos anos. Seu cabelo precocemente branco era o testemunho do seu sofrimento diário. Não reclamava nunca apesar dos inúmeros contratempos e do deboche da população. Sempre atencioso, não se irritava com as críticas que lhe faziam quando a máquina dava pane, ao contrário, sofria junto com a população, mas sempre dava um jeito: cedo ou tarde a velha máquina voltava a funcionar. A conhecia como ninguém, falava com ela como se fosse uma pessoa. Era sua vida.

Na inauguração da nova usina de luz, em discurso inflamado, o prefeito todo orgulhoso não se cansava de propalar a origem européia da máquina comprada na sua gestão para substituir a antiga que, segundo o burgomestre, não era condizente com o desenvolvimento que ele imprimia ao município – vejam que belo exemplar de motor alemão! Nossos problemas desapareceram. Teremos luz todos os dias das 18:00 às 22:00 horas! Não se engane meu povo, continuava o prefeito, vocês têm hoje, o que de melhor existe no Estado: o melhor equipamento disponível e o profissional mais preparado da região, Seu Armando, nosso zeloso, fiel e preparado funcionário com anos e anos de experiência. Estamos nas suas mãos Seu Armando – Os aplausos explodem e o Alcaide sem conseguir segurar a emoção não contem as lágrimas sendo prontamente socorrido com lenço e palavras de carinho pela primeira dama, vaidosamente refastelada na linha de frente da carroceria do caminhão.

A festa mal acaba e Seu Armando já se preocupa com o que terá pela frente. Com o sol já a meio caminho para a noite intui que os problemas virão mais cedo do que pensava; franze a testa cansada pelo tempo e agora, mais ainda, pela fanfarronice que acabou de presenciar. Não demora para que sua intuição seja confirmada e o discurso falso progressista do alcaide vá por terra. Minutos após o acionamento da usina já se escuta um som estranho e intermitente vindo da máquina principal e logo em seguida o seu completo travamento.

A cidade escurece e a população, antes exultante, se revolta. Em massa, na frente da casa do Alcaide, cobra providências aos gritos com todo tipo de impropérios, conhecidos ou fabricados ali mesmo, naquele momento. O Prefeito encurralado gagueja frase soltas ganhando tempo para encontrar uma saída: como me safar dessa? Pensa com a cabeça a mil. De repente a luz: Seu Armando. - Meu povo, a responsabilidade não é minha. Estou tão indignado quanto vocês e passa a falar o mais alto possível para ser ouvido pelo maior número de eleitores. Temos um equipamento da melhor qualidade, um equipamento ALEMÃO, não esqueçam!! E não temos quem saiba manejá-lo. A culpa é do despreparo do nosso amado funcionário.

Enquanto isso, na usina, suando por todos os poros, por mais que Seu Armando tentasse, o germânico não reagia. Ele resmunga baixinho – eu sabia que isso ia acontecer? A quem acusar? O prefeito? Acreditariam em mim? Tenta substituir as peças com problema usando as da velha máquina, mas elas não se ajustam; não têm origem europeia !!. Sem conseguir botar a máquina para funcionar, o brilhante funcionário de antes, vira a piada da cidade e, em vez do prefeito, o algoz da luz agora era o velho caduco do Seu Armando.

- Essa zorra vai funcionar hoje? Perguntavam os passantes com deboche.

- Sei não meu filho, tô tentando. Se Deus quiser um dia ela funciona respondia resignado. Com o passar do tempo, sem sucesso na sua irrealizável empreitada chegou até a rebelar-se - Deus meu, Nossa Senhora Santana me ajude a consertá-la. Nada, nem Cristo, nem Santana atendiam suas preces. Foram tantas as tentativas, foi tamanho o empenho, tanta tristeza por não conseguir acender a cidade que seu corpo e mente paralisaram. O gerador alemão terminou por matá-lo a exaustão sem que ele conseguisse dar luz.

No seu enterro a cidade parou. O prefeito, naturalmente, se apressou para discursar louvando as virtudes e a competência do ilustre morador que só não conseguiu consertar a maravilhosa máquina teutônica por ser estrangeira e o pobre Seu Armando não estava acostumado com tanta modernidade. No finalzinho da tarde já escurecendo, acontece algo inesperado: as andorinhas da igreja matriz deixaram de lado seu gorjear estridente e em seguida um silêncio sepulcral tomou a todos de chofre. Sem que ninguém entendesse o que estava acontecendo: a cidade como por milagre se iluminou para deixar passar o cortejo. Passou-se a comentar na cidade que o ‘milagre da luz” teria sido efeito retardado das preces do Seu Armando a Cristo e a Nossa Senhora Santana.

P.S. A máquina jamais voltaria a funcionar. Por mais tentativas que se fizesse, por mais ilustres e estudados fossem os engenheiros, mecânicos ou entendidos em motores ela não voltou a funcionar. Quem sabe, por solidariedade ao Velho da luz.

FCintra
Enviado por FCintra em 10/03/2020
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