OS TRÊS ATOS DO SOLDADO POLO

No Batalhão de Infantaria (BINFA), em alguma quarta-feira de 1997, no corredor de acesso às seções e ao alojamento dos soldados, há militares vestidos em diversos uniformes. Alguns usam camisetas brancas, shorts azuis, meias brancas e sapatos pretos; outros, estão vestidos com roupas grossas e camufladas. O soldado plantonista da Companhia de Polícia de Aeronáutica (CPA) conversa ao telefone no balcão em que “puxa horas”¹. Lança a vista ao claviculário fixado na parede e responde alguém do outro lado da ligação. Ajeita a pistola 9 mm enfronhada no coldre e pega a caneta amarrada à prancheta de madeira sob o balcão revestido de azulejo. Permanece a bater a outra extremidade da caneta no polegar da outra mão em sinal de notória ansiedade (a hora de ir ao rancho se aproxima).

Em frente ao BINFA, quatro soldados com semblantes sisudos e corpos empertigados penteiam a grama da pracinha com vassourões. As folhas beges caídas das árvores e palmeiras são agrupadas em montículos. Um quinto soldado magro de nariz torto recolhe a folhagem seca e as coloca dentro de um latão azul de bordas amassadas.

Na barbearia rente à ala direita do batalhão, dois soldados aguardam sua vez de cortar os cabelos - estilo padrão – para não correrem o risco de serem punidos.

- Ei, veaco² ! Quando você vai me pagar o serviço de escala vermelha (em fins de semana e feriados) que me deve?

- Cabeça de gelo, meu praça! No próximo domingo de tua escala eu tiro seu serviço.

O cabo Amâncio, perfil lateral do rosto parecido a uma foice e a perna direita sobre o banco de pedra, fiscaliza os soldados na limpeza da pracinha. Aponta para um local para onde os soldados se dirigem a fim de terminarem aquela missão.

No interior do alojamento, encontram-se vários soldados que haviam saído do plantão de 24 horas. No banheiro coletivo, cinco chuveiros encaram outros cinco chuveiros separados por uma distância de quatro metros e meio.

De repente, no dormitório composto por beliches em armações metálicas e colchões de lonas brancas, escuta-se um alarde. A voz itinerante do soldado Polo no corredor chama atenção e as orelhas dos presentes ficam em posição de sentido. Reclamações por não ter vindo maçã, nem pacote de bolachas no lanche da noite anterior e a admoestação de um sargento por causa dos cadarços do coturno afrouxados são as razões para aquele descontentamento.

- Tá vendo aí?! Eu aposto com quem quiser que ele vai empurrar a beliche (que serve de cancela na porta aberta para controlar a entrada de soldados de serviço ou não) com raiva, mandará o plantonista do alojamento para a puta que pariu e dará um soco na porta de um armário.

O soldado Iran devia ter sexto sentido: acertou os três atos do soldado Polo. Todos no alojamento se riram em demasia ao mesmo tempo em que se espantaram com as previsões. Franzida as sobrancelhas que mais pareciam duas asas de gaivota, Polo joga a bolsa quadrada azul “caixão de anjo” no chão defronte ao seu armário.

A sirene toca.

É hora de entrar em formação militar na rua de asfalto irregular em frente ao batalhão para a chamada.

- Vai chegar atrasado, Polo! E hoje é o sargento Valmiro!

- Que que que que que o quê...? – Responde com o rosto empinado e a

boca torcida (igual do Rock Balboa no ringue chamando sua esposa no primeiro filme da série) em tom de ironia.

Sargento Valmiro, gorducho imundo esperando a promoção para suboficial e comemorando todo dia consumindo cachaça na companhia de alguns subordinados puxa sacos, é quem comanda o efetivo da companhia de polícia no batalhão.

Chamada sendo efetuada...

Havia cerca de 40 soldados enfileirados. De súbito, um indivíduo corre a passos largos com o tronco inclinado para o solo.

- Afasta aí, enrolado!

Um sujeito de uniforme desalinhado com manchas úmidas, elásticos esfolados das meias sujas, pescoço ainda molhado e gotas d’água pingando de seus cabelos se esconde na ponta da última coluna e fileira à direita.

Sargento Valmiro percebe o sujeito atrasado.

- Tinha que ser ele! Atenção, praças! Eu dou 100 reais pra quem cheirar a cueca do soldado Polo.

Gargalhadas...

Soldado Polo, cabisbaixo, cochicha alguns palavrões.

Ao receber o salário no dia 22 daquele mês, o soldado Iran olha para a cédula azul de 100 reais e se lembra do episódio. O odor de cachorro molhado foi associado à cédula ao comentar com os soldados Michel e Leocádio bebendo cerveja em um bar. Michel escancara a boca e diz:

- Vamos é gastar essa nota em um cabaré!

¹ Ficar por determinado período no posto de serviço em regime de revezamento até a substituição por outro militar para que se possa descansar.

² Velhaco: significa popularmente aquele que não cumpra com pagamento de dívidas.

Ilton Paiva
Enviado por Ilton Paiva em 04/04/2020
Reeditado em 04/04/2020
Código do texto: T6906506
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