Aja estranho

Eu estava no alto de uma escada, do lado de fora do pardieiro onde eu e meus amigos morávamos em Haight-Ashbury, quando avistei um ônibus de excursão dobrando a esquina. Pendurei num passante da calça jeans o martelo que estava usando para ajeitar uma janela quebrada, e gritei para a meia dúzia de companheiros abaixo, entretidos num carteado:

- Turistas!

Josh resmungou um palavrão.

- Logo agora que eu estava ganhando!

- Rápido, pessoal... não queremos que eles se demorem, não é? - Ressaltei.

- Fique aí, mesmo, Jake - disse Linda, erguendo-se e jogando a longa cabeleira negra para trás. - Vamos fazer a saudação do sol.

- A invocação de Surya? - Indaguei, me posicionando de costas para a parede.

- Pode ser.

Abri os braços na horizontal, como se fosse ser crucificado no alto da escada. Quando o ônibus de excursão parou do outro lado da rua, comecei a cantar uma algaravia desconexa. Abaixo de mim, meus companheiros ergueram os braços e começaram a sacudir os corpos ritmadamente, murmurando um mantra hindu. Os turistas desceram do ônibus e puseram-se a fotografar tudo, fascinados.

- Olha só esses hippies! - Exclamou uma mulher gorda.

- O que será que estão cantando? - Indagou um velhote de chapéu de pescador.

- Devem estar sob efeito de drogas - opinou outra.

Aquilo já era suficiente, decidi. Parei de cantar, juntei as mãos e curvei a cabeça em saudação aos visitantes.

- Bem-vindos à nossa humilde comunidade! - Cumprimentei-os. - Gostariam de conhecer mais sobre a nossa filosofia de vida, paz e amor?

E fiz que ia descer da escada, enquanto meus companheiros caminhavam em direção aos turistas, imensos sorrisos no rosto.

- Acho que já chega, pessoal - avisou o motorista, buzinando para chamar a atenção.

Os turistas foram recuando, apreensivos, e entraram no ônibus. Aguardamos que se afastassem, antes de voltarmos aos nossos afazeres de rotina.

- Todo dia agora essa porcaria - grunhiu Josh, voltando a pegar as cartas.

- Se não fizermos alguma palhaçada, eles demoram mais - resignou-se Linda. - De quem era a vez?

Enquanto eles retomavam o carteado, voltei a me concentrar na janela quebrada. Se mais nenhum ônibus de turistas aparecesse para ver os "animais exóticos", era possível que conseguisse terminar o serviço ainda naquele dia...

- [07-06-2020]