A cruz, o morro, a serpente e o Monge

De frente à janela - xícara de café negro e fumegante nas mãos - vejo a geada, que recobre a grama e demais plantas no pequeno jardim, olho o gelo através do vidro, mas sua gélida lembrança penetra a vidraça, chegando facilmente a mim, remetendo-me a lembrança quente e acolhedora dos tempos de criança, materializada na presença de minha avó e do fogão à lenha, com a chapa vermelha, onde se assavam os pinhões, típicos dessa região, enquanto aquela que foi minha primeira mentora contava-me histórias com enredo e linguagem simples, mas que remetiam a labirintos complexos de significância.

Por volta de 1989 morava com meus avós maternos na cidade paranaense de União da Vitória, acordava sempre aproximadamente às 5 horas e 30 minutos; meu avô já se encontrava acordado, desde 4 horas e 30 minutos, lendo a bíblia e outros escritos religiosos. Minha avó, sempre muito terna e atenciosa, me chamava para que levantasse e ajudasse-a na cozinha. Levantava, me vestia, fazia minha higiene pessoal e seguia até o galpão que ficava aos fundos da casa, onde com um machado, ou facão, transformava frações de toras de bragatinga em cavacos (pequenos filetes de madeira), que seriam usados para iniciar o fogo, no fogão a lenha, onde se preparava o café e iniciavam-se o cozimento de alguns alimentos que fariam parte do almoço mais tarde.

Feitos os cavacos, aceso o fogo, trazida a lenha do galpão para cozinha, colocada à água nas chaleiras (eram sempre duas: água quente não faltava naquela casa) e finalmente quando a chapa do fogão a lenha já estava quente, por volta das 6 horas, eram colocados sobre ela, já em coloração vermelha, como se estivesse em brasa, os pinhões, que seriam cuidados pelos olhos de quem ficava em torno do fogão, sendo virados rapidamente, para evitar as queimaduras nas mãos, para que assim, assassem de forma homogênea dos dois lados. Nessa fase começávamos a compartilhar, eu e minha avó, um chimarrão (costume que possuía e repassou aos filhos e netos).

O frio era intenso, pois estávamos no mês de julho, mês que deu nome a tantos filhos queridos, que se foram precocemente levando consigo aqueles que muito os amavam.

Em meio à alternância que o chimarrão propõe, assim como a igualdade que se manifesta em sua socialização, também se ouviam as pancadas que eram desferidas sobre os pinhões, o que fazia com que sua casca já carbonizada se quebrasse revelando o delicioso fruto. Em meio à degustação das cuias de mate e de pinhões assados, ouvia atentamente as histórias contadas por minha avó, apesar de seu caráter sobrenatural e fantástico, para ela eram histórias, passadas de geração a geração. Demorei tempo para me cercar da ideia de que não há uma oposição entre natural e sobrenatural, ou real e fantástico, o que existe é um conhecimento limitado em relação àquilo que é natural ou real.

Nesse dia me falou sobre um monge, a quem ela denominava santo, de quem eu já havia ouvido muitas histórias, mas conheci nesse dia a parte da história desse homem lendário e fantástico, que andou por nossa região há aproximadamente 100 anos atrás, história essa, que se relacionava a um ponto geográfico especifico, o Morro da Cruz, que fica na cidade catarinense de Porto União, cidade limítrofe a paranaense União da Vitória, tendo como marca desse limite a linha férrea e o Rio Iguaçu.

Ainda lembro-me do timbre da voz e das palavras utilizadas por ela naquele dia frio:

- Andou por aqui no tempo do avô do meu pai, São João Maria e um tio do meu pai o seguiu por algum tempo nas andanças que fazia por nossa região. Apreendeu muito com ele e guardou também suas profecias; ele falou que se algum dia a Cruz, que ele plantou no topo do Morro da Cruz, caísse, à serpente que vive no Rio Iguaçu engoliria a cidade em uma grande enchente e isso quase aconteceu em 1983, quando a Cruz caiu, voltando à normalidade somente quando a reergueram novamente.

Ouvia atentamente minha avó, pois falava baixo, já que meu avô, apegado a sua religião, não gostava muito dessas histórias e ela seguia:

- O interessante é que São João Maria viveu no morro durante sua estadia aqui na cidade, onde ele acampava brotava do chão uma fonte de água pura e que podia fazer milagres, essa fonte é o pocinho de São João Maria, que fica lá no morro. Você foi batizado nessas águas santas!

Era normal batizar os recém-nascidos na Igreja, em meu caso a Católica Apostólica Romana, em casa e no pocinho de São João Maria, para cada celebração eram necessários um padrinho e uma madrinha. Minha vó continuava com a história e eu viajava por aquele mundo que ficou na lembrança e no passado de minha região:

- O tio do meu pai contava que São João Maria acampava no Morro da Cruz durante dias, normalmente sozinho, que ali caminhava pela mata por um carreiro que já era usado por animais, ou até por índios, que levava do seu pocinho até o topo do morro (onde fazia suas orações), esse caminho passava pelas grutas que ficam no meio do morro (metade do caminho até o topo) onde ele olhava o movimento vindo do Rio Iguaçu. O monge passava horas contemplando o rio como um guardião, assim como passava muito tempo rezando no topo do morro.

Interrompia um pouco a história e colocava água no coador de pano, o que fazia exalar pela casa o perfume inconfundível do café quente e revigorante, sentava, apanhava mais uma cuia de chimarrão e continuava:

- Diz que antes de ir embora e nunca mais ser visto, durante um período de retiro no morro da Cruz, ele conheceu a serpente do Rio, pois sua cabeça ficava no Morro enquanto o resto do corpo se esgueirava pelo Iguaçu, ela era grande, esperta e podia falar com aqueles que tivessem capacidade de ouvir, o que não era possível para qualquer um. Mas diz o tio do meu pai, que São João Maria podia, que conversou com ela, que ela revelou coisas e que tentou se aproximar de São João Maria, que não aceitou e por isso plantou uma cruz no topo do morro tornando toda sua extensão um local santo.

- Logo depois disso sem revelar o que aconteceu naquele encontro, plantou a Cruz no topo do morro, fez sua profecia sobre a grande enchente, foi embora tomando rumo até hoje desconhecido, existe quem diga que retornou e, que sempre retornará de tempos em tempos, mas, para quem crê, dizem que mesmo sem estar presente, ele pode ser sentido, ou até visto nos seus pocinhos e na cruz que plantou no topo do morro.

Nesse ponto a mesa do café já estava pronta, meu avô se assentava a mesa e após ele todos nós, para tomar o café e seguir com as atividades do dia. Fui e vou até o morro, fiz o caminho do pocinho, passando pelas grutas e chegando ao cume algumas vezes, juntamente com meus amigos, ainda na infância, exploramos as grutas na esperança de encontrar algo, mas a verdade é que o local trás consigo os costumes, história e crenças de uma região e a mim, proporciona uma transcendência espiritual indescritível quando visito o local.

In memoriam de minha avó Dona Romalina Dalpra de Paula.