Percilita Bobodina e a pescaria de anzol

Algum tempo depois, quando a gente ainda era pequeno, era pesado os afazeres domésticos de duas casas e cinco filhos pra dar conta. Meu pai e minha mãe, então, contrataram Percilita Bobodina, uma senhora de mais de cinquenta anos, para ajudar nas tarefas da casa, principalmente na lavagem de roupas no rio.

Percilita Bobodina era muito carinhosa com a gente. Todo dia ia ao rio lavar roupas e levava uma vara de pescar. Íamos juntos. Primeiro a gente tomava banho no rio, enquanto ela lavava as roupas todas. Mas as brancas, botava pra quarar: ensaboava as peças brancas com sabão de coco de boa qualidade e deixava no sol por um hora. Depois enxaguava e elas realmente ficavam bem branquinhas.

Enquanto as roupas quaravam, ela pegava as iscas e começava a pescar. A gente, ali, do lado, não podia dar um pio sequer. Nesse dia a pescaria foi boa e ela encheu três enfieiras. Eu, com pena dos peixinhos que ficavam se debatendo sufocados, sugestionei colocá-los num balde com água.

Ela topou. Então, os jundiás, piabas, bobós, tucunarés, berés doidos, traíras, tilápias, lambaris, muçuns, pacus, piaus e tambaquis, ficaram nadando no balde de água.

Ao chegar em casa, fui contar a pai, a aventura. Ele investigou os peixes no balde, chamou Percilita e foi taxativo:

— Percilita, venha aqui por favor!

— Já tô por aqui. O que foi?

— Não foi. Vai ser ainda. Olha, Percilita, toda vez a que você for pescar e pegar esses peixes no rio, você mede os peixes pelo seu dedo indicador. Se eles forem do tamanho do dedo para cima, você fica com os peixes, coloca-os na enfieira e trás. Mas se forem menores, devolva-os ao rio. Coloque eles na água!

Meteu a mão no balde, retirou uma piabinha menor que um dedo mindinho e a mostrou:

— Olha, tá vendo esse peixinho aqui? Depois de tratar, secar no varal, fritar, botar no prato com farinha, chupar a cabeça e dar o rabo aos gatos, sobra o quê? Não vale a pena ter todo esse trabalhão; é melhor devolver ao rio...

Mete a mão no balde de novo e pega outros peixes...

— Tá vendo esses aqui? - Mostra – Tá vendo a barriguinha deles toda vermelhinha com esses carocinhos parecendo umas uvinhas? Tão desovando! Tem que devolver ao rio para eles procriarem, senão, daqui uns dias, a senhora não terá mais peixes pra pescar.

Me chamou.

— Osman! Pegue ali outro balde!

Peguei e trouxe.

— Comece a separar aí também, Percilita! Menor que um dedo indicador, bota pra o balde de cá. Maior, deixa nesse balde mesmo. Se tiver desovando, no balde de cá, também.

E assim fomos fazendo isso. Resultado: a pescaria não foi nada boa. Os peixes que davam pra fritar era um terço do que foi pego.

— Terminamos!

— Pronto. Então esses daqui vocês levem lá pra o rio e soltem!... Ah! Pera aí!

Nos parou. Foi lá na mercearia, pegou a caixinha de medicamentos com primeiros socorros que sempre tinha, pegou um vidrinho de mercúrio cromo e iodo e foi passando na boca dos peixes.

— Pra que isso, pai? - Perguntei.

— Pra cicatrizar mais rápido a fisgada do anzol. – Respondeu.

Fui ao rio com Percilita soltar os peixes...

— Seu pai tem cada uma! Quem já se viu tá se preocupando com vida de peixe de rio?

— Mas ele tá certo! – O defendi.

E viu que era bom. Era muito bom lembrar-se de tudo isso e reviver esses momentos mágicos novamente...

Mágicos?

Quando a gente vivencia coisas boas no dia-a-dia, simples, naturais, ações de amor, parecem besteira naquele momento, mas quando o tempo passa, não restam dúvidas que eram momentos mágicos. – Passou a pensar agora no trem - Por isso, valorizar o tempo presente, ter discernimento, prestar atenção, fazer o melhor a cada dia, é a receita para a felicidade.

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* Esse texto é uma das várias histórias contadas no livro "A Viagem de Cristal" de Osman Matos, publicado em 2017 pela Amazon.com nos formatos e-book e impresso.