O rio que nos une
Tinham que se certificar de que nenhum dos colegas em férias da escola perceberia a manobra, o que era mais fácil de dizer do que fazer.
- Escondi o bote debaixo de uns arbustos, na curva do rio - explicou Georges Arsenault. - Ninguém costuma ir praqueles lados.
- Pelo menos, não em dias de semana - redarguiu Jean-Philippe, sempre cauteloso.
- E afinal, o que vamos fazer na Alemanha? - Questionou Christophe, mãos nas cadeiras.
Georges e Jean-Philippe se entreolharam - e riram.
- Espionagem! - Exclamou Georges.
- Isso não tem a menor graça - replicou Christophe, testa franzida.
- Toda vez que os alemães começam com essa história de Reich, acaba sobrando pra nós, alsacianos - disse Georges em tom de desafio. - Pois então vamos lá dar uma olhada, do outro lado do rio. Ninguém vai desconfiar de três garotos de Colmar.
- Vocês ficaram malucos - Christophe não estava nada satisfeito. - Não se brinca com nazistas, são capazes de nos fuzilarem!
- Não estamos em guerra - replicou Georges.
- Ao menos, não ainda - acrescentou Jean-Philippe.
* * *
O grupo atravessou o Reno remando, numa tarde quente e preguiçosa de verão.
- Podíamos ter ido de trem - resmungou Christophe, que acabara sendo convencido pelos outros dois a participar da aventura.
- De trem não teria a menor graça - retrucou Georges, que remava na lateral oposta do bote. - E além disso, não temos dinheiro para as passagens.
Finalmente, embicaram na margem lamacenta do lado alemão do rio. Sentindo-se comandos numa missão secreta, puxaram o bote para um ponto entre as árvores de onde imaginavam que não seria visto da estrada próxima e depois começaram a subir o barranco.
- Foi mais fácil do que eu pensei - admitiu Christophe aliviado.
A estrada levava até Breisach, uma pequena cidade alemã às margens do Reno. Caminhavam pelo acostamento quando subitamente um caminhão de transporte de tropas, vazio, parou à frente deles. O soldado no banco do carona colocou a cabeça para fora e indagou em alsaciano:
- Querem uma carona até o centro?
- Como você fala alsaciano? - Indagou Jean-Philippe desconfiado.
- Nós somos alsacianos - retrucou o soldado. - E é óbvio que vocês também. Subam na boleia, que não temos tempo a perder.
Os três garotos entreolharam-se.
- Não estamos aqui para espionar os nazistas? - Provocou-os Christophe. - Querem melhor oportunidade do que essa?
Subiram na carroceria do caminhão.
* * *
- Aqui é mesmo a Alemanha - afirmou Georges admirado, quando desceram no centro do vilarejo.
- Onde esperava que estivéssemos depois de atravessar o Reno? Na Inglaterra? - Zombou Christophe.
- Não é isso... olha só, aqueles garotos da Juventude Hitlerista - disse Georges.
Um grupo de meninos uniformizados, mais novos do que os franceses, passava pelo outro lado da rua. Quando viram os três forasteiros, atravessaram para o lado deles.
- O que estão fazendo no Reich, franceses? - Questionou com insolência um menino moreno que parecia ser o líder do grupo.
- Você está falando alsaciano, não alemão - retrucou Georges, braços cruzados. - Aqui é nossa terra também.
Pegos de surpresa, os alemães entreolharam-se.
- Eles não estão falando francês - admitiu constrangido outro garoto do grupo.
- E acabamos de descer de um caminhão da Wehrmacht - acrescentou Jean-Philippe.
Os dois grupos ficaram se encarando em silêncio durante algum tempo. Finalmente, o líder da Juventude Hitlerista ergueu o braço na saudação nazista.
- Heil Hitler!
- Jetzt geht's los - replicou Georges, ainda de braços cruzados.
- Vocês também torcem pelo Racing Club? - Indagou surpreso o alemão.
- Todos nós - confirmou Georges, descruzando os braços.
E com essa declaração, foi decretada a paz entre os alsacianos de um lado e do outro do Reno.
A qual durou pelo menos até quase o fim daquele verão...
- [18-09-2020]