Imagem: Carlos Lopes

(Texto  produzido em coautoria:  Marina Alves, Maria Mineira, Alberto Vasconcelos e João Batista Stábile,  inspirado na foto de Carlos Lopes)

 
                               Verdade Escondida

(Parte 1- Marina Alves)

Sob o sol do meio-dia, Amâncio subia a estradinha que levava ao topo da serra. Ao calor escaldante, o velho ofegava, alquebrado pelo peso da idade. Ia fazer oitenta anos no fim de dezembro. E era nisso que vinha pensando na volta da casa de compadre Honório, dono do pequeno e único empório do povoado de Santo Amaro.
Amâncio se sentia cansado. Depois de anos a fio trabalhando nas lavouras de fumo da Fazenda Primavera, de propriedade de Dr. Antero, o homem vinha pensando que merecia um descanso. A casinha ali no alto da serra, o pedacinho de terra cercado de verde, o corguinho de água limpa, os bichos de terreiro, os porcos na engorda, as poucas cabeças de gado de leite e os roçadinhos que tocava, lhe davam o que precisava para viver. Era isso: sentia que estava no limite de suas forças e algum dos filhos haveria de tomar conta das coisas dali por diante.
O velho seguia pensando que tinha mais do que podia ter desejado. Sim! Ia chamar os quatro filhos casados – dois homens e duas mulheres, que moravam em casas ali por perto e explicar tudo que andava pensando. Também era chegada a hora de contar a eles algumas coisas que nunca tinha tido coragem... uma dessas coisas era sobre a mãe que nem chegaram a conhecer direito... eram todos miudinhos ainda quando tudo aconteceu. Ah, estava mais que na hora. A vida cada vez mais curta...
Ia tomar coragem, contar tudo, tudinho sobre Madalena e outras coisas que pertenciam a um passado nunca enterrado de verdade...

(Parte 2: Maria  Mineira)

Já em casa, ainda ofegante pela longa caminhada, Amâncio abriu o antigo armário de madeira onde a finada esposa guardava os pertences de mais consideração. Espalhou em cima da cama, um punhado de retratos antigos. Contemplou a si mesmo, jovem e forte, de braço dado com Justina, mulher bonita, semblante alegre e olhos cheios de esperança. Ela segurava nos braços, Madalena, a filhinha do casal, bem na época que vieram trabalhar nas lavouras de fumo, quando a menina era só cisquinho de gente.
O velho suspirou, sentindo descer grossas lágrimas no rosto enrugado. Sozinho nas suas lembranças, sentia-se aniquilado pelo desgosto que há tantos anos escondia no fundo do peito sem deixar transparecer. Antes de guardar, beijou o retrato e lembrou-se mais uma vez da promessa feito no leito de morte da esposa. Iria esclarecer aquela situação, a qual, na verdade, só quem tinha conhecimento era o compadre Honório e o famigerado Dr. Antero.
Madalena fora criada ali, os pais se desdobraram para dar à filha, o melhor que podiam, a menina aprendeu a ler e escrever na escola da fazenda. Cresceu bonita, sem riqueza nem luxo, mas com muito amor e cuidado. Já contava com dezesseis anos, quando Joaquim, filho de Antero veio da capital visitar o pai. O casal ouviu preocupado quando Madalena falou do seu amor. Contrariados, conhecendo a fama do moço, tentaram em vão, dissuadir a filha, com argumentos de que o rapaz da cidade não servia para ela e além de tudo, ainda era muito jovem, não conhecia a vida. Sabendo que os pais não aprovariam o romance, semanas depois, Joaquim e Madalena fugiram juntos. A filha fizera sua escolha, deixou-a seguir seu destino.
Passados menos de três anos, após a fuga, numa noite de chuva e ventania, Antero mandou chamar o casal de empregados na sede da fazenda. O resultado daquela visita foi que Amâncio e Justina voltaram para sua casinha totalmente atordoados, porém cientes da imensa responsabilidade que teriam dali por diante. Ela trazia uma cesta com as gêmeas recém-nascidas e ele carregando nos braços, dois menininhos assustados. Dentro da calça surrada, havia só um envelope.

[ Parte 3:  Alberto Vasconcelos)

Ainda estava bem viva dentro da memória de Amâncio a conversa que teve com o Dr. Antero naquela noite tempestuosa que o tempo não apagou, a maneira incisiva com que ele fora alertado de que aquelas crianças, desnutridas e maltrapilhas, jamais deveriam saber a sua origem, sob pena dele ser entregue às autoridades para responder por todos os assassinatos que cometera a mando do Dr. Antero e dos seus compadres. Sim. O passado de Amâncio o condenava, fora matador de aluguel até que seus olhos não mais permitiram fazer os serviços que interessavam aos poderosos que tinham sempre álibis irrefutáveis para deixa-lo bem longe dos locais das dezenas de assassinatos.
Registros novos foram forjados onde constavam que as crianças eram filhas legítimas de Amâncio e Justina, para que fosse apagada toda e qualquer vinculação com a família do Dr. Antero e com a sua imensa fortuna. Joaquim voltou para a fazenda, estava bem mais velho, mas quem visse os meninos saberia imediatamente que eram seus filhos, pois eram a cópia fiel do pai. Mesmos gestos, mesma maneira de falar, a única diferença eram as palavras, pois Joaquim pelos estudos e pela vivência na capital, tinha vocabulário diferenciado do mundinho da fazenda.
Amâncio e Joaquim tinham se encontrado no Empório Boa Compra, a bodega do compadre Honório, conversaram como velhos conhecidos e quando ele saiu, compadre Honório alertou que já era tempo de botar em pratos limpos toda aquela trama para que os meninos herdassem o que era direito deles, por serem netos do velho fazendeiro. A maioria dos assassinatos praticados já estavam prescritos e mesmo se ainda houvesse algum, a idade avançada de Amâncio seria levada em consideração na hora do julgamento que, se houvesse, iria envolver muita gente graúda, mas agora a situação teria que ser esclarecida de uma vez por todas. Era chegada a hora de contar tudo...

[Parte 4: João Batista Stabile ]

 Como  era de costume toda tarde; Amâncio separou os bezerros das vacas de leite, para ordenhá-las no outro dia bem cedinho, tratou os porcos e completou os coxos de água, jogou milho no terreiro para as galinhas. Depois sentou num toco que tinha embaixo da figueira a porta da cozinha, fazendo um cigarro de palha, olhava para o horizonte o sol que já se escondia   por traz da serra, seus últimos raios luminosos tingiam o céu de vermelho, como se alguém tivesse jogado de qualquer jeito uma lata de tinta.
Nessas horas que ele mais pensava na sua Justina. Ah, se ela tivesse ali saberia tomar a decisão certa. Mulher de fibra, inteligente e decidida. Mas Deus não quis a poupou de mais esse sofrimento, deixando-o sozinho com esse segredo terrível.
 Amâncio pensava nos conselhos que dera compadre Honório, dizendo que ele dificilmente iria a julgamento e mesmo que fosse teria sua sentença abrandada pela idade e também aquilo pouca importava para ele agora.
Pensava na promessa feita a finada, no leito de morte, que um dia quando as crianças tivessem formadas, contaria todinha a verdade, sem esconder nada. Mas ao mesmo tempo pensava na ameaça de Dr. Antero, naquela noite de chuva e ventania que trouxe as crianças para casa. Pensava ainda no fim que tivera sua filha Madalena, lá na capital, que morreu num acidente doméstico muito mal explicado.
 Não temia a justiça, muito menos a morte, que estava acostumado a lidar com ela desde a sua juventude, temia sim pelo futuro dos seus filhos, que na verdade eram netos e os filhos deles. Dr. Antero mesmo idoso ainda era o chefe político da cidade e era um homem frio e perigoso. Vindo dele poderia esperar pelo pior.
Perdido em pensamento nem sentiu a hora passar, só se deu conta que já era tarde da noite, quando sentiu uma aragem fria que vinha da mata. Entrou na cozinha, lavou os pés numa bacia de alumínio, comeu um pouco de feijão com carne seca que estava em cima do fogão à lenha e foi se deitar.
Não conseguia pegar no sono, quando os galos já cantavam, vencido pelo cansaço, acabou adormecendo...

(Parte 5: Marina Alves )

Sentado  no alpendre da casa de Honório, Amâncio  acabava de relatar  ao compadre  as decisões  que tinha  tomado. Cedo  ainda, tinha ido atrás  de Antonico e pedido que levasse  o recado  aos irmãos: queria todo mundo  no almoço de domingo! Que não faltasse ninguém! Tinha pra si que de domingo o segredo não  passava.
Honório  escutava atento as  palavras  do compadre.  Abriu a carreira de dentes de ouro  num sorriso de satisfação:
- Grazadeus! - exclamou - vai se livrar do peso, minha Virge  Santa!
- Vou! - disse Amâncio - Vou  seguir os  seus conselhos, compadre! E seja o que Deus quiser!
Depois  de uma caneca d'água, Amâncio  tomou  o rumo de casa. Com passos  lentos, o velho  subia a estradinha que levava ao topo da serra.  Ia distraído... Tão distraído que nem reparou no vulto escondido no mato: o tiro veio  certeiro e o atingiu de cheio no meio do peito. Cambaleou, os joelhos se dobraram sobre a poça  vermelha que se desenhou na poeira.  Estava morto!
Atrás  da densa folhagem marginal, o capataz de Joaquim esporeou o cavalo e partiu  a galope rumo  ao povoado. No embornal de algodão, a mando do patrão, levava um bolo de notas
graúdas que deveria passar às mãos de Honório, como  pagamento  de certa revelação...
Duas semanas após o fatídico  acontecimento, Antonico voltou para fechar de vez a casa do pai. Já de saída, o rapaz avistou o paiol  aberto e voltou para cerrar a portinhola. Foi quando  seus olhos caíram sobre  a antiga  cabaça que sempre estivera pendurada rente à  cumeeira. Puxou o objeto já enegrecido e ressequido pelo tempo, que num estalo seco se dissolveu entre seus dedos. Em meio ao pó, um maço  de papel amarelado e carcomido. Antigas anotações! Escritos preciosos  rabiscados por Justina, que valiam  uma fortuna! Antonico apertou
 os papéis contra  o peito e duas lágrimas  grossas lhe escorreram pelo  rosto: o castigo podia até  vir a cavalo, mas a verdade tinha vindo escondida numa cabaça...