Um cavalo para Bento Gonçalves

Era uma vez...

Diz-se que boas estórias devem começar sendo uma vez. Pois esta que lhes conto é das boas e, por isto, é assim que ela começa. Portanto,...

Era uma vez o General Bento Gonçalves da Silva que tinha sido traído pelos Caramurus do Império do Brasil naquele combate da Ilha do Fanfa, quando tentava ganhar o Pampa com seu exército, depois de levantar o cerco a Porto Alegre.

Isto tudo se passou durante a Revolução Farroupilha, guerra braba que enlutou a, então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul por quase dez anos, entre l835 e l845.

O General foi um homem honrado e cavalheiro que nunca se deixou embrutecer pelas inúmeras peleias das quais participou. Expoente de uma estirpe de idealistas para os quais a palavra empenhada tinha o valor de documento reconhecido, a honra deste guerreiro não teve preço jamais. Era o filho predileto dentre uma geração de heróis. De coragem pessoal ilimitada, ele nunca deu um passo para trás, embora tenha sido sempre cordato, amoroso com sua família, enquanto paternal e compreensivo com seus comandados, mesmo que colocasse, sempre, a justiça em primeiro lugar.

Ele havia confiado num acordo de trégua durante o combate. Mas, tão logo botou os bigodes de fora, foi preso e colocado na Presiganga que era um navio que servia de prisão de segurança fundeado ao largo de Porto Alegre, no Rio Guaíba. Como era o chefe revolucionário e a maior personalidade da Província, logo o transferiram para a Corte, no Rio de Janeiro, julgando os Imperiais que, com Bento preso tão longe, a guerra terminaria por falta de ânimo dos farroupilhas. Quão enganados estavam os que assim supunham. Enquanto a luta continuava mesmo sem sua presença, ele foi trancafiado na Fortaleza da Laje, tida como inexpugnável, na companhia de Pedro Boticário, também líder rebelde capturado no Fanfa.

Bento tinha estatura física mediana. Tinha sido criado nas duras lidas de campo e temperado nas peleias e bolantinas da fronteira agreste do sul. Ainda na casa dos trinta anos, já era Coronel e Comandante da Fronteira do Jaguarão, quando liderou o levante contra o estado de abandono e as injustiças a que o Governo Imperial submetia a sua querida terra. Era um atleta que cavalgava garboso como nenhum outro entre os melhores. Duro como corunilha e ligeiro como gato de tapera, juntava uma arma, chapéu ou relho caído ao chão sem diminuir a carreira da montaria, com a naturalidade de quem levara a vida inteira de-a-cavalo.

Já o Pedro Boticário, sedentário e muito gordo, nada afeito às atividades físicas, era um pensador. Além de boticário, o homem se tornara jornalista e planejava, junto com o mineiro Domingos José de Almeida, a estratégia administrativa dos Farrapos.

Pois o General era, ainda, o chefe da Maçonaria na Província e, através de contatos com essa organização no Rio de Janeiro, lhe foi possível serrar a grade da pequena janela da cela onde estavam.

Bento saltou agilmente para fora e ficou desolado quando Pedro Boticário entalou-se na estreita passagem. Enquanto o companheiro insistia para que fugisse só, o leal Bento subiu de volta pela corda estendida na muralha e negou-se a ir sem o seu infortunado amigo. Assim era o grande líder que teve o Rio Grande naqueles tempos, capaz de gestos de amizade e altruísmo imensos, mas de firmeza extrema nos combates, nos quais muitas vezes ele regou o solo sagrado da República Riograndense com o sangue dos adversários.

República, sim! Pois o General Antonio de Sousa Netto havia proclamado a República durante o período da prisão de Bento como forma de serem os Farrapos reconhecidos internacionalmente num Estado Soberano. Assim, poderiam conseguir, através de negociações diplomáticas, usar o porto de Montevidéu para suas importações necessárias à guerra, bem como vender o charque, produto principal da terra naqueles tempos. A Proclamação da República motivou as forças rebeldes a continuarem a luta, ao passo que providenciavam a volta do chefe.

Bento foi eleito Presidente, mesmo estando preso no Brasil. Seu prestígio continuava forte. Sua liderança, incontestada...

Mas, voltemos ao que interessa:

Com o retorno de Bento à cela, a frustrada fuga foi descoberta e os seus contatos, então, conseguiram que fosse transferido de prisão. Desta feita para Salvador, no Forte do Mar, como “medida de segurança”. Acontece que era tudo uma armação para que os republicanos baianos liderados pelo Doutor Sabino Silva promovessem a sua fuga e retorno ao Rio Grande.

Bento teve permissão para nadar em torno da fortaleza todos os dias, sob vigilância dos guardas armados na muralha. A rotina se firmou até que, numa manhã ventosa de início de verão, ele nadou decidido para uma canoa à vela que se aproximara. Embarcou rápido e, à força de remos e velas, rapidamente se fizeram ao largo, desaparecendo para os lados da Ilha de Itaparica, reduto dos abolicionistas e republicanos do Doutor Sabino. Quando os canhões de uma escuna Imperial foram acionados, não funcionaram por estar a pólvora molhada. A organização da fuga incluiu uma estada em Itaparica para esfriar o acontecimento e, depois, a viagem clandestina de navio até o Desterro, em Santa Catarina. Daí, de-a-cavalo, seguiu para o Rio Grande, incógnito.

II

A Província de São Pedro do Rio Grande do Sul era, nessa época, ainda mais atrasada do que outras do Império do Brasil. Sendo a mais meridional, sempre fora uma raia de disputas acirradas entre Portugal e Espanha e nascera com 250 anos de atraso em relação à Bahia, por exemplo. Situada ao sul da Linha das Tordesilhas, está nas terras que eram de Espanha, potência que não conseguia defendê-la e dentro dos planos expansionistas de Portugal que não tinha força suficiente para a conquista e manutenção. Até a demarcação feita depois de um tratado ajuizado pelo Papa, quando metade do Pampa Oriental do Rio Uruguai ficou com Portugal em meados do século 18, os chamados Campos de Viamão, as Vacarias da Serra e o Pampa dos índios Charruas eram uma terra de ninguém, conhecida de muito poucos europeus.

Habitadas por tribos de aguerridos índios nômades que dominaram os cavalos cimarrones e viviam a prear os gados que em grandes manadas ficavam ao alcance de suas “boleadeiras”, estas coxilhas de intenso verde e de aguadas fabulosas se tornaram um paraíso para todos aqueles que, de qualquer lado da fronteira não demarcada, tivessem interesse em não se encontrar com alguma autoridade. A lei era a da valentia e a das armas brancas. Quem fosse bom de peleia era temido até que outro melhor e mais valente aparecesse.

Assim, bandos de gaudérios se formavam pelas solidões imensas. Reuniam-se num momento e se separavam no outro como redemoinhos de poeira arrastados pela força do Vento Minuano. Ao sabor das lutas e do vício de jogar por qualquer motivo, surgiu o gaúcho, conhecido como andejo montado em seu cavalo, seminu dentro do xiripá, debaixo de um chapéu de pança de burro e tendo como moradia um poncho de lã à moda dos Charruas. A comida farta era a carne que estava sempre garantida pela habilidade que desenvolveram com o laço de doze braças e as boleadeiras herdadas dos nativos. A bebida sempre foi o chimarrão de erva verde, tomado às cuias ao redor das fogueiras onde assavam o churrasco gordo em algum rincão de costa de mato na reversa do vento Minuano. Como o mate é uma fonte riquíssima de vitaminas e sais minerais, viviam felizes e bem alimentados, entre desafios para lutas sangrentas à adaga pelo simples prazer de pelear, carreiras de cavalos, o jogo do osso, as décimas à viola e as domas de potros. As mulheres índias missioneiras que eles roubavam eram suas companheiras ocasionais, jamais tendo constituído famílias regulares. Quando “se bandeavam”, os gaudérios deixavam para trás as pobres “chinas”, no mais das vezes prenhas e infelizes. Elas nada valiam naquela sociedade de guerreiros brutos e nômades. Na verdade, afora o sexo que lhes proporcionavam eventualmente, elas se constituíam num empecilho para aqueles homens. E era tão fácil arranjar outras lá adiante que não valia a pena carregá-las naquelas loucas cavalgadas que eram a razão de ser de suas vidas. Assim, à custa do instinto materno que as fazia proteger suas crias, as mulheres guaranis tão desprezadas foram responsáveis pelo surgimento das primeiras gerações de mestiços de cepa nativa caldeados com brancos ibéricos ou negros fugitivos dos garimpos e plantações do norte que também acorreram ao Continente para viver a liberdade oferecida pelos descampados.

Quando as primeiras fixações lusitanas se fizeram nos Campos de Viamão, os colonos tiveram que se relacionar com tais elementos e o fizeram com muitas reservas. Com o tempo, os gaudérios foram-se quase que adaptando aos costumes dos europeus. Evoluíram para a maneira simples de viver do gaúcho, morando nos galpões e se mudando de pouso conforme a safra de trabalho, sempre afeitos às lides rurais, onde são imbatíveis. No entanto, naqueles tempos do início ocupação portuguesa do Rio Grande, os gaudérios tiveram papel preponderante como guerreiros valorosos.

III

Passava o tempo e foram se firmando as sesmarias onde os estancieiros desenvolviam suas famílias que passaram a usufruir as riquezas que geravam. Então as mulheres passaram a ter a sua função social, além de tomar conta da casa e criar os filhos, um por ano.

Como os homens, maridos e filhos maiores, estavam sempre às voltas com as lides das guerras, foram as mulheres gaúchas que tomaram conta das estâncias e das finanças familiares, por necessidade. Passaram a resolver questões de caráter comercial e administrativo das fazendas a par das lides domésticas, enquanto estavam sempre a esperar que os guerreiros conseguissem voltar. Surgiu assim o verdadeiro papel da “prenda” riograndense, companheira amorosa e fiel depositária da família, a quem o gaúcho peleador confiou tudo o que possuía. Quantas vezes estas heroínas anônimas pegaram em armas para defender seus lares na ausência dos seus homens? E, quantas delas foram vítimas de violências inomináveis ao defender o domus familiar? Inúmeras foram as que tiveram que reconstruir com as próprias mãos as estâncias saqueadas e destruídas. Mas a tudo isto elas sobreviveram enquanto laboravam de sol a sol para refazer suas existências na dureza da vida da fronteira. É inegável que o Brasil deve a elas, tanto quanto aos homens, a sua conformação geográfica na região sul.

IV

A Serra do mar se debruça sobre as lagoas do Litoral Norte do Rio Grande como que cortada à faca. São paredões de pedra escura entremeada de Mata Atlântica, separados do mar pela sucessão de lagoas fechadas pela restinga arenosa que conduz aos Campos de Viamão.

Região do tamanho de Portugal tem um microclima que é diferente do resto do Continente. Ali o inverno não é tão rigoroso nem o verão é tão quente. Mas é batida pelo Nordestão, vento que só dá folga ao viajante para a chegada de um dos seus parceiros sulinos, o Minuano ou o Carpinteiro. Os ventos movem as dunas de areia fina esculpindo a fisionomia da longa costa desabrigada ao seu capricho. Durante o verão elas se movem para o Sul. No inverno são empurradas mais para o norte, num movimento cíclico interminável. Mais para o interior da restinga, na costa oriental das lagoas, o pasto salobro é farto o ano inteiro, propiciando bom trato aos animais dos viajantes.

A praia foi o caminho natural por onde os lagunenses de Brito Peixoto chegaram ao “Continente do Rio Grande” para estabelecer uma ligação terrestre do Brasil com a Colônia do Sacramento, enclave português no Rio da Prata, defronte de Buenos Aires, centenas de léguas ao sul.

Pois, por esta praia deserta e ventosa, é que seguia, num trote largo, um homem bem montado levando outro cavalo de tiro. Andava rápido o dia todo, parando somente nos arroios maiores para dar água às montarias e retomava o trote chasqueiro como que impulsionado por poderosa mola, sempre seguindo apressado no rumo do Continente.

Quem o visse... Mas, naquelas solidões, quem o veria? Bueno, se alguém pudesse vê-lo, imaginaria se tratar de homem de negócios viajando para a Banda Oriental para comprar gados, couros ou coisas assim. Era vaqueano com certeza. Parava ao entardecer nalguma aguada e tomava tererê, o mate frio, para não acender um fogo que o denunciasse de longe. Comia charque cru, apenas lavado na água corrente para tirar um pouco do sal, enquanto mateava e dava um alce aos cavalos. Dormia um pouco com um olho só e acordava na madrugada para retomar a viagem.

Descendo a costa, ele virou o rumo para o poente quando viu a serrania se dobrar nessa direção. Teve, então, a certeza de estar entrando nos Campos de Viamão.

Os animais já davam muitos sinais de cansaço quando um deles mancou e o homem teve que soltá-lo à própria sorte, prosseguindo mais devagar no cavalo restante. Lá pelas tantas da tarde desse dia, avistou ao longe um rancho de onde um penacho de fumaça azulada subia manso para ir se confundir com o azul do céu.

Agora que já estou no Rio Grande, pensou, já posso tentar conseguir um cavalo em melhor estado para fazer as últimas léguas que faltam.

O cavalo avistara também o rancho e reunia suas últimas forças na intenção de chegar até lá.

V

Pois, naqueles tempos da Guerra dos Farrapos, a miséria andava campeando mais uma vez nos Campos de Viamão. As tropas de ambos os lados “requisitavam” gados e cavalhadas e, no mais das vezes, nem recibo passavam pelos “empréstimos” que as pessoas sabiam ser a fundo perdido. Era a face cruel da guerra que se mostrava de ambos os lados contendores com a mesma dureza e inflexibilidade. Somente a simpatia da causa gaúcha contra o gigante imperial brasileiro fazia com que as gentes continuassem agüentando firme aquela situação de penúria que grassava nos campos onde sempre houvera tanta fartura.

Assim, é que:

Era uma vez... Uma senhora que, apesar do estado de pobreza em que se encontrava a sua estância nos Campos de Viamão, deixava ainda transparecer no olhar a dignidade e a altivez da prenda gaúcha. Aparentava bem mais idade do que tinha realmente e alguns ares da formosura de outros tempos teimavam em permanecer na fisionomia cansada. Estava ela a matear junto a um fogo de chão no puxado dos fundos do rancho barreado que era a sede da estância. Em seu vestido de chita desbotado, com os cabelos lisos que já iam branqueando enrolados num coque, ela se agasalhava no xale que lhe cobria os ombros. Pensava na vida enquanto olhava para a cuia do chimarrão e como que adivinhava o sol da tarde a desfazer o último palmo de caminho no céu antes de se render à escuridão das noites naquelas soledades. As sombras iam se alongando e tudo ia tomando uns tons avermelhados. Olhava para as mãos grossas do trabalho pesado e sentia uma ponta maior de tristeza naquele dia. Fazia já bastante tempo que soubera da morte do marido numa escaramuça com os Caramurus lá pelas bandas do Passo do Vigário, na defesa da Cidade Setembrina, a capital Farroupilha. Dos filhos que, com a graça de Deus, conseguira criar, dois estavam mortos também. E o mais moço, ainda um rapazito, perdera a mão direita na guerra e, por isto, podia dar-se ao luxo de não estar peleando como todo o mundo por ali. Mas Dom Tempo cauterizara estas feridas, transformando-as em cicatrizes que ficaram, para sempre, doendo dentro de si.

- Que vida maula..., - Pensava entre um sorvo e outro. A cuia recosida pela água quente de tantos mates era como um espelho mágico onde ela via os acontecimentos todos tristes nos quais sua vida se tornara tão miserável. Tivera, nos tempos do falecido, muitas invernadas de gado gordo, eguada de cria nos banhados, parelheiros raceados nas patas dos quais o finado apostava com confiança patacas e dobles, vacas de leite para queijos, ambrosias e coalhadas, capoeira de galinhas e, sempre, um paiol de bom milho para o inverno, além de uma roça de aipim para os “pucheros” com que criara os filhos.

Das gurias, não sabia. Tinham tomado os caminhos de atrás da milicada, seduzidas e desonradas como tantas outras. Deviam andar pela vida na Setembrina ou no Porto Alegre, sabia ela lá...

E agora, ainda por cima de tudo, a tal missão de cuidar do cavalo. O Major, de jaleco surrado com dragonas tricolores esmaecidas pela intempérie, recomendara muita tenência no feito. Mui importante, dissera. Que fosse mui discreta, também. Deixara a bolsa de milho e recomendara mais de uma vez que tratasse o animal com carinho. Quanta vontade de fazer uma farinha daquele precioso cereal para tirar a barriga da miséria. Mas, fora recomendada pelo oficial e, gaúcha que era, não haveria de faltar à confiança da República, jamais.

O mate roncou e ela tornou a enche-lo, enquanto continuava a cismar.

E este Nico que não chega nunca... Saiu de manhãzita, ainda sem sol, e até agora ainda não deu as caras... O caminho da Setembrina... Nestes tempos de guerra... As coisas andam meio paradas, mas ninguém sabe quando é que o diabo atenta...

Estava ela absorta nestes pensamentos quando, pelo canto do olho, uma imagem longínqua no campo chamou sua atenção. Imediatamente se pôs alerta e afinou o olhar habituado às lonjuras campeiras.

Viu um cavaleiro. Pelo jeito de montar, percebeu que se tratava de um gaúcho e que vinha direito à casa. Instintivamente lembrou da garrucha carregada que ficava à mão dentro do rancho. Naqueles tempos de guerra, convinha prevenir sempre... Pelo menos era uma chance...

Deixou a cuia e entrou apressada no rancho, de onde podia ver quem chegava, sem ser vista. Nem deu tempo de ir esconder o cavalo no capão de mato, na beira da sanga.

VI

O cavaleiro vinha subindo a coxilha devagar. Num instante, seus olhos perceberam um tordilho gordacho batendo as mãos, pendurado debaixo de uma ramada mais para os fundos do rancho.

Seu cavalo demonstrava estafa e ele apeou, chegando ao cimo com o bicho pelo cabresto. Parou em frente à modesta morada e deu ô-de-casa, tirando o chapéu de abas largas e barbicacho trabalhado com bombas prateadas.

Seu rosto magro de olhar enérgico e penetrante era emoldurado por uma cabeleira preta que se completava com umas costeletas unidas ao bigode. Trajava bragas por cima de umas ceroulas de crivos, botas de boa feitura com esporas nazarenas. Camisa de mangas de algodão simples por debaixo do jaleco aberto. Faixa campeira e guaiaca de maletas onde se podia ver uma adaga de cabo prateado. Atravessada na frente, cobria as fivelas prateadas uma pistola de dois canos. Um pala de seda listrado de azul e branco jogado para trás completava-lhe o traje que estava empoeirado, indicando que vinha de longa jornada. O cavalo cansado tinha bons arreios com mala de poncho e pessuelos.

A mulher apareceu à janela do rancho, timidamente, observando o homem e adivinhando nele um ar de posição social elevada nos gestos, roupas, armas e arreios do cavalo. Pareceu-lhe um daqueles charqueadores lá das Pelotas que passavam por ali noutros tempos no rumo de Sorocaba com suas comitivas.

- Buenas tardes, senhora! Laus Crist! –Saudou à moda do Continente.

- Louvado Seja Nosso Senhor Jesus! - Respondeu a velha.

- Vou de viagem para minha estância e o meu cavalo se encontra abombado. Como percebi que tendes pendurado aquele tordilho em bom estado, faça-me o favor de botar preço no animal que pagarei à vista sem regatear. Tenho muita urgência de continuar a viagem.

- Nestes tempos de guerra, meu senhor, muito me agradaria poder lhe vender por bom preço o tordilho, pois bem que preciso de uns cobres. Todavia, o cavalo não me pertence.

- Então, diga quem é o dono para que possamos nos entender. Como disse, tenho muita pressa de viajar.

- Acontece que o dono, que eu não sei quem é, também não o poderá vender. O animal foi-me confiado para ser tratado e entregue ao General Presidente Bento Gonçalves quando por aqui passar no seu retorno ao Continente. Não insista. É minha palavra final. Infelizmente não possuo outros animais. Os últimos foram levados pelos malditos Caramurus do Moringue, aqueles corvos rapineiros.

O semblante severo do homem se desfez num sorriso simpático e paternal próprio de um verdadeiro Chefe de Estado.

- Vossa missão está, então, cumprida, cidadã. Podeis entregar-me o animal com confiança. Eu sou o Presidente de retorno à Pátria. –Disse, enquanto tirava da guaiaca suas dragonas tricolores em amarelo, vermelho e verde com quatro estrelas douradas como prova do que dizia. - O Rio Grande se orgulhará sempre de ter filhos como a Senhora. Aquente uma água para o mate que tenho erva nova, falou enquanto virava-se para abrir o pessuelo nos arreios da montaria.

- E assim é que foi, naquela vez...

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Iberê Machado
Enviado por Iberê Machado em 14/11/2005
Reeditado em 29/06/2006
Código do texto: T71362