O LOBOSOME E O CORONEL INSONE

    

     Era uma noite abafada, muito comum no clima seco e árido da região norte. Sob a claridade da lua cheia, o coronel Hermenegildo Veiga, a envergar um paletó já fora de moda, de bengala à mão e porte de fidalgo inglês, vinha percorrendo, sem pressa de chegar, as estradas daquele vilarejo coalhado de casinhas antigas.

     O ilustre cavalheiro dava a impressão, a quem o observasse atento, de ser um sujeito deveras entojado, muito presumido de si, desses tipos aí que se arvoram como os donos da verdade.

     Você, caro leitor, pode estar se perguntando: o que haveria de estar fazendo este homem tão distinto andando, assim sozinho, por lugares ermos nas altas horas da noite sob o risco de ser assaltado? Creia-me que só aquele que tem brigas homéricas com o sono, e não consegue ter paciência para assistir TV na madrugada, poderia chegar perto de entender esta estapafúrdia situação, ainda mais se levarmos em conta os rumores de uma criatura selvagem que estava espalhando o terror nos arredores da vila.

     O coronel emproado, naqueles passeios noturnos de pouca precisão, parecia até estar pedindo para ser atacado pelo tal animal sanguinolento misterioso. Pois não é que a possibilidade da desgraça, antes só levantada na previsão dos maldosos, aconteceu naquela noite quente, de lua gorda! O fato se deu bem quando o velho fidalgo, distraído lá nas suas filosofias de pensamentos soltos, perdeu o rumo das ruas conhecidas e foi parar num beco de casas abandonadas tomado pelo capim alto.

     Ah, pois então. Quando ele deu por si, já era tarde!

     A criatura peluda e esquálida que irrompeu da macega do terreno abandonado postou-se num único pulo à frente do coronel, que parou o caminhar de súbito. O monstro, uma coisa meio homem meio cão xexelento de rua, eriçou todos os pelos, elevou-se nos peitos das patas, levantou os membros superiores emagrecidos por cima da cabeça canina e, lá do alto, das pontas dos braços, arqueou as garras à frente preparando o retalhar visceral de cima pra baixo; e não contente com a postura de ataque, quis ele impressionar ainda mais a vítima entojada arreganhando-lhe toda a dentaria da boca escancarada e babosa.

     — Grrrr, aprepare-se, seu moço, aprepare-se porque eu sou um lobosome e vou te atacarrrrr! – Disse a fera em voz grunhida, fina, meio asmática.

     O coronel, se impressionado ficou, não deu a menor importância, pelo contrário, cravou, com a mão esquerda, a bengala no chão de terra batida do beco, e espalmou a outra na direção da coisa.

     — Espere um momento. Um momentinho aí, seu dentuço.
  O monstrengo, pouco acostumado com uma voz de comando tão determinada, desceu toda aquela magreza de pelos de cima dos peitos das patas, mas continuou firme na posição ameaçadora de braços arqueados por cima da cabeçorra.

     — Grrrr, o que foi?

     — Não se fala “lobosome” não, ô criatura animalesca ignorante, é “lobisomem”.

     O comentário, lançado assim de chofre, pegou o bicho desprevenido, tanto é verdade que os pelos dele brocharam na hora, os braços desceram até à altura do peito, as mãos desmunhecaram botando as garras à nocaute, e um ricto apalermado tomou conta de toda a base da focinheira incrédula.

     — Grrr... ué, e qual é a diferença?

     — Ora, meu caro, qual é a diferença, você diz! Olhe para mim. – Esnobou o coronel postando-se de perfil a levantar o queixo de modo altivo e, na mesma levada, jogou um olhar 43 para o pulguento. – Olhe bem para mim e me diga lá se o coronel Hermenegildo Lindolfo Laurentino Rico da Veiga é homem para ser atacado por um “lobosome”, hein? Ora, faça-me o favor. Imagine as manchetes dos jornais informando aos quatro cantos deste Brasil o seguinte: “O coronel Hermenegildo, homem do mais fino trato, educado nas letras das mais acadêmicas, é atacado por um lobosome”. Ah, me desculpe, mão não dá não. Tome tento rapaz!

     O peludo revirou os olhos para os dois lados matutando o proceder daquela inusitada situação. Jamais tinha topado com um jantar tão indigesto. Depois de alguns segundos de hesitação, a carranca se iluminou como se tivesse achado a solução para o impasse. Por isso, ele se armou novamente todo só em braços arqueados, pelos eriçados e boca escancarada.

     — Grrr, aprepare-se, seu moço, eu sou um “lobisomem” e vou te atacarrrrr!!!

     O coronel nem pestanejou, o mais que fez foi dirigir os olhos à própria mão, que levou à frente do rosto, como se estivesse conferindo se as unhas estavam bem aparadas.

     — Criatura animalesca ignorante, entenda que sou um letrado. Esta denominação pobre, ordinária, encontradiça na boca do povo, embora pronunciada de forma correta, não está à altura de minha pessoa. Permita-me informá-lo que, a meu ver, você não passa de um licantropo.

     — Opa, opa, opa! Também não precisa ofender. O que é que há? Grrr, eu não levo desaforo pra casa não!

     O peludo indignado desceu os braços e posicionou-se como um lutador de boxe, de punhos fechados, dando pulinhos ridículos como se fosse enfiar a mão na cara do entojado.

     — Acalma-te, ô bicho ignaro de pai e mãe. De acordo com a Wikipédia, que sei bem, não é a melhor fonte de conhecimento do mundo, licantropia é a capacidade ou maldição caída sobre um homem que se transforma em lobo. Em psiquiatria, é um distúrbio onde o indivíduo pensa ser ou ter sido transformado em qualquer animal. Então... ei... ei... espere aí... aonde você vai? Volte aqui, rapaz. Não me deixe falando sozinho não. Mas onde já se viu isso? Além de ser ignorante, ainda é mal-educado!

 

Um mês depois.

     Dulcineia das Coxas Grossas, nome de ofício, bêbada e sem rumo, depois de atender um cliente pobretão num barraco da periferia, foi dar com as fuças no beco abandonado. O monstrengo peludo, uma vez mais, de modo dramático e espalhafatoso, se fez todo em caras e bocas naquela postura patética de ataque e, com a voz rouquenha, lançou o terrível ultimato:

     — Grrr, aprepare-se, moça, aprepare-se porque eu sou um lican... lican... licantripa... não, não...um lican... grrr... ai, ai, ai, Minha Senhora do Perpétuo Socorro... grr... lican...

     — Cumé que é, meu filho. Eu não tenho a noite toda não! – Impacientou-se a prostituta.

     — ... eu sou um lobosome e vou te atacarrrrr!!!

 

 

 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 22/01/2021
Reeditado em 28/12/2023
Código do texto: T7166150
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