O PRESENTE IMPROVÁVEL

Alberto Vasconcelos

Mais um dia chegava ao fim. A maré de lua cheia lançava à praia as ondas que espalhavam algas arribadas e nesse movimento de vai e vem, eram acompanhadas pelos caranguejos fantasma que, rapidamente, entre uma e outra onda, apanhavam a comida que apenas seus olhos pedunculados conseguiam enxergar. A solidão não é boa companheira. Ela maltrata e faz surgir na mente as imagens das histórias passadas de boca a boca, sobre traições e mal querências. Os mexericos daqueles que preferem dizer “coitado” em vez de “parabéns” podem até conter meias verdades, mas são sempre carregadas de veneno. Finalmente as nuvens densas abriram espaço para a lua cheia criar o caminho luminoso entre os pés do pescador e o horizonte. Jovino fez outro arremesso. Nesse tapete luminoso sempre há peixe faminto que vem atrás de algo para comer, mas quase sempre é comido por outro maior. Em ondas, como as do mar, as vozes maldosas repetiam os detalhes do encontro da sua amada com o seu desafeto, aquele mesmo que, noutras épocas fora seu melhor amigo, companheiro de brincadeiras e de pescarias, mas que por algo que ele nem lembrava mais, tornara-se seu inimigo mais ferrenho. As imagens e vozes eram interrompidas quando as algas presas ao anzol faziam peso como se fosse peixe, mas as suas mãos experientes sabiam quando era um animal. Recolhia a linha, preparava outra vez o anzol e fazia novo arremesso.

Cléa Magnani

Acompanhando com os olhos a Lua que parecia tentar ainda ver os últimos raios do Sol, carregando consigo as derradeiras cores do poente, Jovino, amargurado pelos tombos que a vida lhe dera desde que se reconhecia por gente, analfabeto por ter de trabalhar com o pai, na puxada das redes desde menino, e depois, sozinho, quando seu pai nunca mais voltou, naquela noite de tempestade em que o mar devolveu a jangada vazia, com o mastro partido, teve de sustentar a mãe e os oito irmãos, arriscando-se na mesma jangada que matou seu pai, até que numa briga de faca com seu amigo de infância, Raimundo, teve o nervo do braço cortado e só poderia pescar de caniço, pensava na vida. Tudo estava ainda pior depois que chegou aos seus ouvidos que Marina, seu sonho, havia sido vista com Raimundo, seu desafeto, mesmo depois dele se declarar a ela e tudo parecer tomar um rumo... Ele não podia acreditar! E foi naquele momento quando o peso das infelicidades mais o arrastavam para baixo, que seu anzol se prendeu em algo que parecia pesado e difícil de sair da água.... Se fosse peixe, seria um Cação! A vara envergava e dificultava o enrolar do molinete. Mas “a coisa” parecia estar se deixando levar ao sabor da maré, que subia com a influência da Lua Cheia e o encrespar das ondas da chuva que certamente viria. A luta durou um tempo, com as ondas que no repuxo arrastavam “a coisa” de volta para o mar, até que um raio riscou o céu, um trovão ribombou, estremecendo tudo ao seu redor, e a chuva grossa desabou. Jovino amarrou o caniço com a linha em volta dum coqueiro e correu para casa. Na manhã seguinte, o sol amarelo, que aparecia em meio ao nevoeiro, encontrou Jovino cavando a areia. A maré baixa deixava que se visse a linha enterrada na areia ainda encharcada. Cavando com a concha de uma folha do coqueiro derrubada pela forte chuva, a quase dois palmos de fundura, apareceu a ponta da caixa onde o anzol se prendera. O que guardaria aquela caixa? Ao lavar a areia que se prendia na madeira escurecida e encharcada, o rapaz pôde observar que algo se balançava ao se mover a caixa, que nem era muito grande. Sem nenhuma ferramenta ali, Jovino carregou sua descoberta para casa e com um facão tentou retirar os pregos que enferrujados pela água do mar acabaram por se quebrar, exibindo o conteúdo da caixa: uma garrafa tampada com a rolha e toda coberta com parafina de vela, para que a água não a penetrasse e molhasse um papel enrolado como um canudo e amarrado com uma fitinha, para que pudesse ter sido colocado ali. Ansioso, o jovem quebrou a garrafa numa pedra que cercava o jardinzinho da beira da casa, desamarrou o laço da fitinha e desenrolou 3 folhas de papel escritas dos dois lados e um mapa feito à mão, com nomes, e números, que ele não conseguia entender, analfabeto que era. Jovino calçou as sandálias, pegou seu chapéu e saiu apressado rumo ao vilarejo onde àquela hora da manhã o Padre Luiz deveria estar terminando a missa das 7:00. Tirou o chapéu, entrou na Igrejinha da praça no momento em que o Padre dava a bênção final: “O Senhor Vos Acompanhe, em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” AMÉM! Respondeu Jovino depois de fazer o Sinal da Cruz três vezes. Enquanto as Filhas de Maria, e as Senhoras do Apostolado da Oração faziam fila para beijarem a mão do velho Sacerdote, ele esperava ansioso perto da porta da sacristia. E quando Padre Luiz o viu, abriu seu sorriso bonachão e disse: - Que prazer vê-lo na nossa Igreja Jovino! Está tudo bem? – Na sacristia, o rapaz mostrou os papéis enquanto contava como os havia encontrado. Colocando os óculos, o padre desenrolou os documentos e os leu em silêncio, enquanto Jovino esfregava as mãos de ansiedade. - Isso é a Escritura de uma vasta área de terra, Jovino. E está em nome de Jovino Ribeiro da Conceição.

-Mas esse sou eu, Padre! - Assombrou-se o rapaz.

Relendo outra e outra vez em voz alta, o padre confirmava que alguém havia passado para o nome de Jovino uma fazenda de 50 alqueires numa cidade beira mar a uns 100km dali, e tinha até o mapa do local. Intrigado com a história, na semana seguinte Padre Luiz resolveu acompanhar Jovino até essa cidade para comprovar a veracidade dos documentos, que estavam registrados em Cartório. O padre parou seu Fusquinha azul na frente do prédio de três andares, entraram e ao serem atendidos comprovaram que o Dr. Júlio Alves de Souza Aranha, dono de mais da metade daquela cidade, doava para Jovino 50 alqueires de terra com casa, pasto e barco pesqueiro. Mas Jovino não conhecia esse homem. No Cartório deram o endereço, e assim chegaram na Mansão do Dr. Júlio. Ao serem anunciados, o Dr. os recebeu com alegria e surpresa. Como souberam da doação? Como tinham os documentos? A história de Jovino era inacreditável! Como essa garrafa foi parar lá? Quem atirou a caixa no mar? Da mesma forma, Jovino também não podia acreditar. Como o Dr. Júlio sabia quem ele era? E porque a doação? Horas de conversa depois, Dr. Júlio mandou chamar alguém. Entra na sala, um velho magro, de olhos apalermados, de cabeça baixa. E fica de pé ao lado da porta.

- Seu Zé! – Chama o Dr.

- Oi! - Responde o homem, sem levantar a cabeça.

- Você sabe quem está aqui? - pergunta o Dr.

- Sei não sinhô. - Ele responde.

- Veja se você conhece, Seu Zé.-

O homem fica olhando para Jovino e para o Padre, franze os olhos e faz que “não” balançando a cabeça. O Dr. Se dirige a Jovino e pergunta:

- Você não conhece esse homem Jovino? –

Ao ouvir esse nome o homem começa a repetir:

- Jovino... Jovino... JOVINO RIBEIRO DA CONCEIÇÃO!!!!

Dr.. Júlio o acalma

-Sim seu Zé, esse é o Jovino, seu filho!

Agora quem não entende é Jovino.

- Mas Dr. Júlio, meu pai morreu faz uns 15 anos! –

Então o bondoso senhor, conta uma história:

- Numa noite de tempestade, eu estava no mar quando uma jangada à deriva, com um homem desacordado esbarrou na minha lancha. Eu e meu piloto resgatamos o homem. Quando despertou na Santa Casa para onde o levamos ele não se lembrava de nada, nem quem era. Só chamava por seu filho Jovino. Tentamos encontrar sua família nesta praia, mas ninguém o conhecia. Ele ficou aqui. Passamos a chamá-lo de Seu Zé, pois nem do seu nome ele se lembra. Só repetia seu nome e chorava dizendo que queria lhe dar um futuro. Então fiz esse documento de doação para ele guardar. Ele deve ter se lembrado de que você seria pescador. Resolveu mandar o documento pelo mar...

E o destino fez o resto!

Ao abraçar seu velho pai, Jovino chorava como uma criança, e a voz do filho querido pareceu ter feito seu pai recordar-se de quem era.

No mesmo dia foram buscar sua mãe e seus irmãos que agradeciam a Deus e ao Dr. Júlio por tanta generosidade.

Assim, mais uma vez, da areia renasceu uma nova Vida ...