MINDUIM.

Minduim era um garoto franzino. Sérgio Felipe, de dez anos, era mais conhecido por seu apelido. Pele e osso de tão magro. Os cabelos lisos, com piolhos. Vivia se coçando e sendo dispensado das aulas por isso. Gostava pois podia brincar mais. Tinha saudades da sopa do recreio. A vila pequena. A igreja no centro da praça. O coreto abandonado. Três dezenas de casas, ao redor da praça. As ruas de terra. Sem iluminação pública. Sem água encanada. Casas com quintais grandes, repletos de pés de frutas. Manga, laranja, goiaba, mexerica, limão, mamão, jatobá, seriguela, banana. Casas com chiqueiro e galinheiro. Paiol de milho. Um banheiro longe da casa. Cercas de madeira. Um poço. Tevê preto e branco. Rádio de válvulas. As noites escuras. Lamparina e lampião. Histórias de lobisomem e mula sem cabeça. Fogão a lenha. Forno a lenha no quintal. Um armazém de secos e molhados. Dois bares. Uma máquina de beneficiamento de arroz. O riozinho de águas claras. Os pastos. Um cemitério. Minduim vivia descalço, só de calção. Estava sempre junto dos garotos de sua idade. O Pedrinho, o Guto e o Zeca. O joelho vivia ralado. As pernas com cicatrizes dos machucados nas cercas de arame. O futebol com bola de meia. As quedas dos cavalos. Gostava de pegar insetos. Ficava horas observando as pequenas criaturas. Percevejos, aranhas, formigas, joaninhas, besouros. Tinha medo de chuva com raios. Corria pra se aninhar entre os pais, na cama de colchão de palha seca de milho. Um avião sobrevoando a vila. -" Pai. Estou com medo!" Gritou o garoto. -"É um avião, filho. Um dia você vai voar num desses." O garoto sorriu. -"O senhor já voou num avião?" O homem enrolou o cigarro de palha. -"Ainda não! Deve ser bom." A família grande. Tinham três cachorros, um gato e dois perus. Uma dezena de gaiolas de passarinhos. As latas de óleo vazias viravam caminhãozinho pra ele. Gostava quando passavam tratores pela vila. -"Quero trabalhar num desses, quando crescer." A caminhonete de um rico fazendeiro. A garotada cercou o veículo. -"Quero uma dessas quando crescer!" A melhor roupa pra ir a missa dominical. Quermesse. Baile. A turma do Minduim foi barrada pelo segurança do baile. -"Só entrarão quando tiverem mais de dezoito anos. Vão jogar bolinha de gude ou brincar de pique-esconde!" Minduim gritou. -"Meus irmãos estão aí dentro!" O óleo de máquina de costura escorreu pela testa do garoto. Era fedido mas deixava os cabelos lisos. Um peteleco do pai. -"Pra casa, Minduim!" Ele se despediu dos amigos. -" Puxa. Tomei banho a toa." Os chicletes com figurinhas da copa do mundo da Espanha. Os pirulitos Zorro. Balas Juquinha e Sete Belo. Mariolas. Jujubas. Cocadas. Paçoquinha. Os irmãos não lhe davam moedas. Minduim pedia doces para as pessoas mas não ganhava nada. -"Moleque pidão. Vai trabalhar!" Ele abaixava a cabeça. -"Não posso trabalhar pois sou criança." Passou a ajudar o pai no cultivo da horta. Estendeu a mão, ao terminarem um canteiro de salsinha. O pai o cumprimentou. Minduim esperava uma moeda. -"Obrigado, filho. O canteiro ficou muito bom." Reuniu a turma e foi até a fazenda Alvorada. -"Vamos buscar jabuticaba!" As estradas de terra. As porteiras. Os pastos com vacas e touros. Sol forte no cocoruto. Minduim não avisou a mãe. -"Passarinho e morcego fizeram a festa com as jabuticabas. Levem o que conseguirem pegar." Disse o capataz da fazenda. Os garotos tomaram água, antes de voltarem a vila. De longe viu a mãe com o chinelo na mão. O embornal cheio de jabuticabas. -"Te procurei por todo canto, peste!" Um puxão na orelha do garoto. Duas chineladas na bunda. Ele estendeu o embornal. -" Pra senhora. São da Alvorada." Ela o abraçou. Amava jabuticabas. -"Sérgio. Muito obrigada." Ela quase não o chamava pelo nome. O garoto sumiu no abraço materno. Ganhou a coxa do frango no jantar. -"Oxe. A coxa vai pro Minduim por que?" O irmão mais velho estava de olho na coxa de frango do garoto. A outra coxa era sempre do patriarca da família. A mãe mostrou a bacia com as jabuticabas. -"Merece, Minduim. Vou pegar metade pra fazer licor. É só encher o garrafão com cachaça, açúcar e as jabuticabas." No dia seguinte, Minduim viu quando o irmão escondeu o garrafão de licor debaixo da cama. -"Vai ficar aqui durante duas semanas pra curtir bem." Uma semana depois. A família na roça. A mãe na igreja. Minduim chegou da escola. A casa vazia. Ele foi ao quarto do irmão e puxou o garrafão de licor. -"Trem pesado. Tenho o direito de tomar um pouco pois eu busquei as jabuticabas." Abriu o garrafão. -"Melhor não virar tudo!" A canequinha de esmalte. -"Só metade pro mano não descobrir." O garoto tomou um gole. -"Bão mesmo. Docinho." Fechou e colocou o garrafão no lugar. Sentiu sede. Sede de água. A cabeça revirou. A vista cansada. A mãe o encontrou dormindo. -"Minduim? Dormindo a essa hora?" O garoto não acordou. Passou a tarde toda dormindo pesadamente. A noite caiu. O pai estava preocupado. -"Minduim dormiu antes do comercial dos Lençóis Parayba." O irmão mais velho estranhou. -"Quem nesse mundo dorme com um sorriso desses?" Ele cheirou a boca do irmão. -"Cheiro de cana e jabuticaba. Minduim tomou licor. Está bebim da Silva." Disse o rapaz, sorrindo. Um circo chegou na vila. -"Se tiver matinê, Minduim pode ir." Ordenou o pai. Os garotos ansiosos. O dono do circo foi taxativo. -" Não podem vender pirulito pra platéia. São muito novos! Vão ganhar ingressos grátis para a matinê." Minduim ficou radiante. Mostrou os ingressos para os pais. O circo foi embora no sábado, pra tristeza do garoto. Doce de abóbora no tacho. O garoto foi recrutado pelas irmãs para ajudar a descascar abóboras. -"Sou homem e deveria ter ido pescar com o pai." Duro era suportar as modas sertanejas no rádio, ouvir as irmãs falando de paqueras. -"Está na hora de colher mel de abelha Jataí. A cabaça esta pesada!" Ninguém lhe deu ouvidos. A noite, a família jogando dominó. O garrafão de licor pela metade. Minduim fazendo a tarefa escolar. Um terço no sítio. -"Minduim vai no terço!" Ordenou a mãe. Uma caminhada de uma hora, na mais completa escuridão, na volta pra casa. Uma semana depois. Um forró na fazenda. -"Minduim fica. Muito pequeno pra ir em forró." Disse o pai. O garoto chorou. -"Terço pode, forró não pode!" Minduim odiava jiló, o prato preferido da família. -"Sou adotado, só pode! Eles me odeiam! Cavalos são mais bem tratados nesse fim de mundo. Nunca fui a cidade de ônibus, nunca andei de trem de ferro. Não conheço o mar, não me deixam brincar com a espingarda." Ele adormeceu. O galo cantou. Os latidos dos cães. O cheiro de café fresquinho. Minduim não acordou. -"Está com febre. Minduim tá doente!" Anunciou a mãe ao resto da família. Um banho gelado. Uma xícara de chá de boldo com canela. Uma canja de galinha. O garoto estava pálido. -"Amanhã é quinta, dia que passa a jardineira pra cidade grande. Lá tem posto médico!" Disse o pai, preocupado. O irmão mais velho chegou. -"Minduim?! Olha, dois pacotes de figurinhas da copa. Trouxe um pirulito pra você, meu irmão!" O garoto sorriu por ter sido chamado de irmão. Mal tinha forças pra abrir o pacote de figurinhas. A visita dos amigos da escola. Os vizinhos. -"Alguma coisa que ficou com vontade de comer. Esse garoto é pidão. Pode ser lombriga!" Disse um vizinho da família. O ônibus de manhã. A viagem de trinta quilômetros. Minduim abraçado ao pai. Adorou um sorvete de massa, comprado pelo pai na rodoviária. Um táxi até o posto médico. Uma espera de uma hora pra ser atendido. Minduim olhava as pessoas de branco. As máscaras. Pareciam ser importantes. -"Pode ser verme. A febre é normal, vai baixar. O garoto é forte!" Disse o médico, bem mais jovem que o pai do garoto. A rodoviária. Minduim viu o pai tirar uma ficha telefônica do bolso. Um papel amassado. Um número de telefone. -" Alô...Genoveva?! Sou eu, Raimundo. Sim. Estamos bem. Eu estou pensando em te visitar, conhecer Ubatuba. Quero conhecer o mar. O Minduim vai gosta de conhecer o mar!" O garoto recebeu um cafuné. Ele abraçou as pernas do pai. -"Chora não, minha irmã. Eu também estou com saudades de você. A gente vai mesmo. Abraço. Fica com Deus!" O garoto estava feliz. -" A gente vai de carro de boi, pai?" O homem sorriu. -"Não mesmo. Se a gente for de carro de boi, você terá vinte anos quando chegar lá. A gente vai de trem de ferro, uai." Minduim abraçou o pai. Não estava acreditando que viajaria num trem de ferro. O guichê de passagens. -" Filho. Nosso ônibus vai sair daqui a três horas. Dá tempo pra ir comprar seu remédio e visitar aquele parque de diversões, aqui do lado da rodoviária. A gente toma um sorvete depois." Minduim estava feliz. A barraca de tiro ao alvo. Minduim deu alguns tiros, sem acertar nada. Entre um brinquedo e outro, Minduim fazia perguntas ao seu pai. -" Como é seu irmão mais velho? Sei lá, Minduim. Cada pergunta que você faz! O seu irmão gosta de uma pinguinha mas é muito trabalhador. Vive cheio de calos nas mãos. Não teve muito estudo mas é boa gente. Suas irmãs também não estudaram mas ajudam na lavoura. Logo vão se casar. A gente bota fé em você, Minduim. É um orgulho ver suas notas boas, filho. Único jeito de pobre se dar bem é pelo estudo. Não tem outro caminho." O pai ajeitou o chapéu de palha. O garoto estava admirado. Aquelas palavras aqueceram seu coração. Ele passou a ter outra visão de sua família. Eles foram juntos ao tobogã e a roda gigante. Minduim dormiu durante a viagem de volta. A família fez festa quando chegaram. Minduim e os pais iriam para o litoral. Os demais ficariam pois ainda tinha trabalho na roça. Minduim dormiu bem. A febre foi embora. Ele espalhou a notícia aos amigos. Iria andar de trem e conhecer o mar. -"Eu tenho os melhores pais do mundo. A melhor família do mundo." Dezoito anos depois. Uma caminhonete chegou ao vilarejo. Um rapaz de branco era o motorista. Ele tirou os óculos escuros. A igreja e o coreto restaurados. As ruas com asfalto. Um condomínio. Um hotel sendo construído para explorar o turismo ao rio de águas claras e medicinais. Os carrinhos de ambulantes na praça. Uma multidão em frente ao posto médico, ainda sem ser inaugurado. O prefeito e alguns vereadores. Alguns fotógrafos. O prefeito com o megafone. Após um discurso de uma hora, o anúncio esperado. -" Prosseguindo. Hoje inauguramos o posto médico daqui. Uma luta do filho dessa terra, o querido doutor Sérgio Felipe. Um homem honrado, preocupado com o bem comum. Foi dele a idéia da cooperativa de doces, a descoberta das propriedades medicinais da nossa água. Ele será o médico de vocês, assumindo a direção do posto, concomitantemente ao seu exercício e empenho na Câmara de vereadores." O povo aplaudiu. O irmão mais velho do médico puxou o coro. -"Doutor Minduim. Doutor Minduim." O médico chamou seus pais. Uma foto para a posteridade. Um avião sobrevoou o lugar. -"Pai. Em breve iremos voar num avião daqueles. Nada é impossível para quem crê." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 06/02/2021
Reeditado em 06/02/2021
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