Rua do Escorrrega e lá Vai Um

A Rua do Escorrega e lá Vai Um.

Coisas que só acontecem comigo – XLIII

De súbito, ao dobrar inadvertidamente uma esquina, em Teresina, lá pela década de 70, encontrei-me dentro dessa rua, que mais parecia ter sido projetada aleatoriamente para o desastre. Era uma rua íngreme, descendente, que tinha, ao final, o Rio Parnaíba em boa cheia de fevereiro.

Rua de chão batido, argila preta, com pouco abaloamento, mas incrivelmente compactada, sem buracos. As casas dos dois lados da rua estavam num plano mais alto. Como não existia saneamento básico, todas as águas servidas escoriam para o leito da rua. Eram casas ligadas umas às outras e, de acordo com a nomenclatura da época, eram chamadas de meia parede ou parede e meia.

Os moradores, ou mais detalhadamente as moradoras, eram mulheres que, segundo a definição de hoje, seriam chamadas de Assessoras Independentes em Desenvolvimento Tecnológico e Cultural do Sexo. Muitas dessas apareciam, de quando em vez, à porta de suas residências, em trajes de dormir, mesmo que estivéssemos quase ao meio dia.

Graças ás águas que escorriam para o meio da rua, ela passou a ser chamada, oficialmente, de Rua do Escorrega e lá Vai Um. Tão oficioso, quando seu segundo apelido, Rua do Sabão. Tanto o nome como o codinome expressavam bem sua característica. Imaginemos, então, que o piso molhado era muito mais escorregadio que pau de sebo. Nem o sol de Teresina conseguia secá-la e, naquele sábado nublado, já caíra uma chuvinha de meia hora de duração. O solo estava saturado e, sem drenagem, tudo piorava.

Até hoje eu transpiro só de me lembrar daquele sofrimento. Eu usava uma calça boca de sino, quadriculada em azul e branco, daquelas que doía na vista, e uma camisa combinando com aquela minha papagaiada. Para não ajudar em nada, ainda me falta falar nos sapatos saltos carrapetas, muito na moda naqueles tempos.

A minha intuição era de que a tragédia estava armada, só faltavam as trombetas anunciar o início. Era certo que eu não iria retornar nem que a vaca tossisse ou os pregos perdessem as cabeças!

De repente, eu tive o prenúncio do que iria acontecer, quando um pato resolveu passar em minha frente, cruzando a rua.

- Se você sorrir, você vai para o inferno, viu? - disse para ele, furioso.

- Qua... qua... qua!

Coitado do Anseriforme anatidae! Foi o primeiro a perder o equilíbrio! As duas patas escorregaram de uma só vez! Tentou bater as asas, mas isso só complicou ainda mais a sua vida, pois ele desceu de papo arrastando ao chão, igual a um pinguim rumo ao rio. Nisso, ouvi algumas risadas logo atrás de mim.

Quando volvi a cabeça para ver do que se tratava, vinha visão deixou-me tranquilo, pois eu não era o único escalado para a nova modalidade de esqui na lama. Como se sabe, a vitória de um arruinado é ver outro ainda mais arruinado. Três rapazes, impecavelmente vestidos com terno e gravata e portando cada um, uma bíblia debaixo do sovaco, se aproximavam. Estavam tão empertigados que pensei que fossem se casar.

Meninos, não prestou! Um deles derrapou e empurrou outro, que puxou o outro que me empurrou e, assim, seguimos todos formando um trenzinho de desesperados. Éramos três patetas e um ganso desengonçado, patinando atrás do pato, ladeira abaixo. A essa altura, a torcida nas portas das casas gritava alucinadamente, não torcendo por nós, obviamente. Sobraram bíblias para todos os lados e espero que tenham servido, pelo menos, para a conversão de alguém.

Escapamos com vida, meio inteiros, graças a uma carroça que subitamente cruzou a rua transversal à nossa frente, deixando cair dois imensos fardos de algodão de 80 kg cada um. Batemos de cara os quatro e, pelo menos dois deles caíram de bunda no chão. Não sabíamos se riamos ou se chorávamos, mas na verdade, nós choramos de tanto rir. Coitado de um dos rapazes! Teve um acesso de riso descontrolado, talvez de nervosismo...

Em seguida, ajudamos a colocar os fardos de algodão sobre a carroça e ainda agradecemos aos céus pela ajuda intempestiva, embora eu não saiba se o benefício fora, de fato, compensador. Se eu tivesse caído no rio, provavelmente daria um banho na roupa para retirar a lama e iria para casa encharcado.

Naquele estado de apresentação, sabíamos que nenhum táxi nos atenderia, por isso, tivemos que retornar a pé. Antes, porém, eles se apresentaram:

- Isaias, Samuel e David. Um profeta, um juiz e um rei!

- Muito prazer, sou o apóstolo Tomé. Só acredito porque estou vendo.

E nunca mais os vi!

São coisas que só acontecem comigo.