A chuva, Samuel e o Acaso.

Manhã de quarta-feira e o céu parecia estar caindo sobre o Rio de Janeiro, em poucos minutos as águas já tinham tomado para si ruas e avenidas transformando passagens de pedestres e de veículos em riachos por todo o estado e não somente na capital; municípios menores no grande Rio, baixada fluminense e outras localidades mais afasta das viam-se completamente ilhadas, tal como as casas de várias pessoas que nestes lugares acabaram perdendo grande parte das coisas que possuíam. Em menos de um dia todos os habitantes do rio de Janeiro contemplaram a chuva equivalente a quarenta e cinco dias; o poder destrutivo das águas foi novamente sentido de perto por todos.

A principal ligação entre as zonas Norte e Sul do estado; o túnel Rebouças; foi atingido pelas chuvas com tanta violência que a encosta localizada sobre ele cedeu, deslizando e praticamente fechando um dos acessos ao túnel, o que ocasionou na cidade o caos.

O trânsito simplesmente parou em vários pontos; o centro o Rio, já alagado permanecia também parado por horas a fio, os carros não conseguiam vencer as correntezas formadas pelas águas e tampouco os pedestres se arriscavam, não havia mais divisão entre ruas e calçadas. Somente chuva e águas por todos os lados; poucas vezes o Rio de Janeiro viu tal fúria natural.

Em lugares mais distantes homens e mulheres lutavam como podiam para salvar seus pertences, mas sem muito sucesso; muitos ficaram desabrigados e as autoridades estavam de mãos atadas contra aquele inimigo natural.

Bem este é um panorama do dia mais caótico do ano para os cariocas, mas não foi tudo o que aconteceu; em Nova Iguaçu, moradores de uma casa não sabiam mais o que fazer, haviam ficado pesos dentro de sua casa que por sinal fora construída abaixo do nível da rua e as águas barrentas que jorravam pelas tampas de bueiro entravam em torrentes poderosíssimas.

Samuel Andreas Chagas estava preso por uma corda ao redor da cintura para não ser arrastado e mesmo contra as possibilidades se arriscava tentando sem sucesso alcançar os moradores daquela residência, suas forças estavam sumido muito rápido na batalha contra as águas, mas mesmo assim ele permanecia; entrou no quintal praticamente nadando ignorando o perigo que corria por não saber ao certo sobre que solo “pisava”; o corpo de bombeiros já tinha sido acionado, mas certamente estavam tendo problemas para atender o grande número de ocorrências e pedidos de ajuda. Samuel por sua vez estava nas redondezas para encontrar alguém; neste dia completava exatos um ano e seis meses que ele se encontrou com Fortuna, a Sorte, e pouco mais de seis meses que encontrara-se com o Azar; mas sua busca não tinha acabado, faltava os dois piores irmãos desta confraria de potestades, aqueles que arquitetam os planos que são tão bem desempenhados sutilmente sobre as vidas humanas, e justamente por aquele motivo é que Samuel se encontrava ali. Ele acabou se envolvendo no resgate improvisado por vizinhos para retirar da casa inundada um grupo de três pessoas e fez o melhor que pôde, um a um retirou um jovem casal e sua filha; o rapaz e a moça resgatados não pareciam ter mais de vinte anos e a filha deles por volta de dois anos apenas.

Outros moradores locais estavam por sobre os muros ou Lages nos arredores e logo assim que os resgatados estavam sãos e salvos sobre a casa de um dos vizinhos e as pessoas olhavam para ele meio sem saber o que dizer, afinal nunca o tinham visto naquela localidade e de repente ele surgiu como que vindo do nada e lançou-se para ajudar.

_ Que grande sorte você está passando por aqui nesta hora._ mencionou agradecido o rapaz resgatado.

Samuel percebeu de imediato que aquele jovem embora estivesse sendo muito sincero em seu agradecimento estava também envolto pelo manto de Fortuna, e limitou-se a responder apenas:

_ Não agradeça a sorte, tampouco agradeça a mim; mas a Deus que espera que você seja a melhor pessoa que puder ser, viva com sua família da melhor forma que conseguir e procure aquele que pode lhe dar a vida eterna.

O jovem pai de família arregalou os olhos e daquele modo ficou estranhamente paralisado. Samuel olhou ao redor e as pessoas permaneciam com suas feições molhadas e simplesmente paradas no tempo, nem um respiro, nada era feito por parte deles e a imagem era extremamente inquietante, até as águas corriam devagar e os pingos grossos da chuva desciam lentamente através do ar.

Finalmente a voz surgiu à suas costas:

_Vi debaixo do sol que não é dos ligeiros o prêmio, nem dos valentes a vitória, tampouco dos sábios o pão, nem ainda dos prudentes a riqueza, nem dos inteligentes o favor; porém tudo depende do tempo e do Acaso_ disse o estranho logo se apresentando._Eu sou o Acaso e você quem é?

Quando Samuel se virou para vê-lo imediatamente percebeu que a hora do confronto se apresentava diante dele, o Acaso estava parado bem no centro da rua e a chuva parecia não incomodá-lo, embora as gotas o estivessem alvejando também.

_ Eu sou Samuel ._ respondeu meio espantado, pois seu adversário acabara de recitar uma passagem Bíblica de Eclesiastes. Porém meio distorcida.

Duas coisas chamaram de imediato a atenção de Samuel em relação ao Acaso, primeiro seus olhos acinzentados e segundo que a exemplo de seu irmão o Azar, quando o encontrou trazia consigo um chicote, assim também o Acaso trazia seu instrumento. A Gadanha.

O cabo longo e a lâmina larga eram coisas que Samuel pensava que nunca veria, mas o fato era que o rapaz já sabia toda a verdade sobre as quatro potestades, por isso o Acaso não fazia a menor questão de esconder sua real natureza.

_ Samuel!_ repetiu o Acaso; continuando_ O embusteiro e esotérico; aquele Samuel que usado por Fortuna e Infortúnio aprisionou tantas pessoas nas correntes do Destino e nas redomas da mente?

_Não. Esse Samuel já se foi; era uma velha criatura, eu agora sou outra pessoa, livre dos fantasmas da falta de conhecimento. Tudo o que fiz no passado fiz com a melhor das intenções, nunca tive o intuito de enganar pessoa alguma, mas vocês se aproveitaram da minha boa vontade para plantar embustes em minha alma, estava tão enlaçado quanto as pessoas que prejudiquei.

De todas as potestades que Samuel já encontrara, o Acaso era o que parecia menos humano, embora sua feição parecesse com o de uma pessoa comum exeto pelos olhos cinzentos, porém algo nele era muito diferente.

_ Por que chove nesta cidade tanto assim? Você saberia me dizer?_ indagou falsamente a potestade.

Samuel ficou sem resposta, não viera até ali para falar da chuva, tinha outros assuntos mais importantes para tratar com aquela criatura.

O Acaso continuou:

_ Não costumo falar com os homens; não assim como estou falando com você, gosto de falar por meio de sinais. Desta forma sou sempre superior, mas falar frente a frente é algo que me rebaixa demais.

A ira de Samuel se ascendeu quando seu adversário pronunciou aquelas palavras, “falar frente a frente e algo que me rebaixa demais”.

_ Ora! Cale-se! Não me venha com essa, você tem é inveja porque todas as coisas foram dadas aos homens e não a vocês.

A face do Acaso mudou e se tornou tão endurecida quanto uma estátua de mármore, nela era possível ver parte de sua idade fora do alcance das contagens dos anos mortais. Ele bateu sua gadanha contra as águas que corriam lentamente e elas se libertaram do encanto que as prendia como se o mundo tivesse voltado a se movimentar, porém as pessoas permaneciam como meras estátuas.

_ Mais respeito quando se dirigir a mim mortal ou eu mostrarei a face do ceifador._ Vociferou a potestade.

Samuel pensava consigo mesmo; “O acaso e uma palavra sem sentido. Nada pode existir sem uma causa”; já dizia Voltaire. E falou:

_ Seu domínio sobre mim acabou, retire-se e liberte estas pessoas.

O Adversário retrucou:

_ Suas palavras não exercem força alguma sobre mim mortal; ainda há tempo de reconsiderar, seja o cavaleiro do círculo astral mais uma vez, e eu manipularei as coincidências a seu favor de tal forma que os mais sábios dos homens invejaram sua postura e posição; minha gadanha passará longe de você durante tanto tempo que pessoas virão do oriente e do ocidente para vê-lo e aclamá-lo.

Tal como seus outros irmãos, o Acaso nunca perderia a chance de mostrar falsas vantagens, com palavras escolhidas por séculos que derrubaram homens das mais diversas nacionalidades em todas as eras.

Ele continuava a falar:

_ Sou um instrumento do Destino para que seus planos se realizem e o seu destino foi traçado há tempos.

A chuva voltou a cair como antes, mas as pessoas ainda não se moviam.

_Não acredito em coincidências, e sim em providência, não preciso de sua “ajuda” manipulando coisa alguma a meu favor, tenho diante do Deus Eterno que todas as coisas conhece um Sumo sacerdote, Advogado e Intercessor, muito mais poderoso do que você sequer pode conceber mesmo sendo o que é; e é Ele quem guiará toda a minha vida por quanto tempo ele desejar. Não existe pré-destinação.

Por incrível que parecesse naquele momento o Acaso já sabia que não poderia se demorar mais tempo frente a Samuel, ele procurava com seus olhos cinzentos o pecado original no espírito do rapaz, mas tudo o que via era a marca no coração do jovem, como uma circuncisão espiritual, uma circuncisão reconhecida nos céus, na terra e abaixo da terra. O fato era que pelo amor de Jesus, Samuel não habitava mais nas sombras da falta de entendimento, mas agora vivia plenamente no Reino do Filho do Amor.

O Acaso estava visivelmente incomodado.

Agora foi o jovem que continuou:

_ Realmente minhas palavras não têm por si só força alguma que possa forçá-lo a fazer a minha vontade, entretanto as palavras que pronuncio não são minhas e sim daquele que venceu a todos vocês a mais de dois mil anos._ e prosseguiu_ Liberte as pessoas que estão aqui e saiba que de agora em diante nunca mais serei sua marionete novamente.

O Adversário de Samuel trocou sua arma mística forjada em alguma esfera fora do alcance da matéria e da mente, da mão esquerda para a direita e nitidamente contrariado reiniciou mais uma rodada do combate que travavam verbalmente.

_ Você ainda não me respondeu por que chove tanto aqui nessa cidade de repente assim.

Samuel não sabia o que dizer quanto a isso e permaneceu calado tentando pensar o mais rápido que conseguia para não ser pego em algum laço criado por seu oponente.

_Eis aqui outras perguntas:_ retomou a palavra._ O que eu estou fazendo aqui? Você já se perguntou? Quando minha irmã relatou que você tinha se rebelado e sido alcançado pelo Altíssimo, logo soube que nosso encontro seria inevitável, mas resolvi que nos encontraríamos no dia em que eu tivesse de ceifar alguém; para unir o útil ao agradável, como dizem os mortais.

Estas palavras fizeram Samuel estremecer por dentro, e ele olhou para as pessoas paralisadas ao seu redor, homens, mulheres e até crianças, sobre os muros e telhados; alguns na rua sendo açoitados pela correnteza barrenta. Não podia conceber que o Acaso estivesse ali para levar algum deles.

_Você não pode fazer-lhes mal_ Pronunciou meio sem crer em suas próprias palavras.

Rindo, o Acaso chocou novamente sua Gadanha contra o chão e só então Samuel percebeu que até aquele momento o ar a seu redor estava tão carregado e pesado que mais parecia que estavam dentro de uma redoma de vidro gigante; com o toque da arma do Acaso no chão, o ar e o tempo pareceram perder aquele efeito estranho.

_Engano seu Jovem Samuel, Você passou pelas águas da recriação e recebeu o Espírito do Altíssimo em seu interior, portanto não posso atacá-lo, embora eu tenha vindo aqui para levar você, pois não acreditava que fosse verdade, infelizmente é. Mas nem tudo está perdido para mim, posso levar qualquer um dos que estão aqui; o simples fato deles acreditarem mais em mim do que na Verdade já me dá esse direito e você sabe disso, as sombras se mostram sempre mais “luminosas do que a luz”, ao menos nos olhos dos mortais; São todos meus, é o destino deles.

Aquele momento era o ápice do conflito; de um lado um homem e do outro uma potestade, o que seu oponente estava falando era real, ele poderia atacar qualquer um, da forma que achasse mais pertinente e todos atribuiriam o feito ao Acaso, a má Sorte ou o Azar, foi então que Samuel percebeu que todos eles estavam ali, não podia vê-los, mas sabia que estavam todos ali, Sorte, Azar e Destino, juntos como um grupo de serpentes atacando a mesma presa, em uma trama diabolicamente armada para privar alguém de sua vida. O Acaso permanecia parado apontando sua Gadanha hora para uma pessoa, hora para outra de modo arrogante como se tivesse vencido o mortal.

_ Então Samuel, o que vai ser? Escolha quem fica ou se achar mais cômodo escolha quem vai; encare isso como um presente que dou a você.

O Acaso estava realmente se saindo bem, pelo simples fato de que Samuel se esqueceu que tudo o que esta potestade fala parece verdade, mas não é; realmente ele até poderia levar alguém, mas estava esperando que o rapaz concordasse com o seu raciocínio verossímil, para que ele tivesse o direito real de fazê-lo, e isso daria a falsa impressão de que o destino daquelas pessoas já estava traçado não importando a força que Samuel fizesse para salvá-las.

_ Tudo depende do tempo e do Acaso_ repetiu seu inimigo pressionando ainda mais a mente do jovem.

Samuel cerrou os punhos, forçando-se a crer que aquilo não podia ser verdade, ele lembrou de uma passagem na bíblia que dizia que dos dons de Deus para os homens ficavam a fé, a esperança e o amor, e dos três o maior é o amor. Lembrou-se também que o Deus que é amor não podia permitir que o Acaso levasse uma pessoa ao seu bel prazer. Só então ele percebeu o porque de seu encontro ter acontecido em um lugar como aquele em meio a um temporal que estava paralisando o Rio de Janeiro, frente aquelas pessoas.

Finalmente Samuel disse:

_O Espírito de Deus acaba de mostrar o porque do nosso encontro aqui.

Todas as quatro potestades que lá estavam, embora ele só pudesse ver uma, sentiram a mudança de postura em Samuel.

_ Tolice!_ falou estremecido o Acaso._ eu sabia que você viria aqui e apareci para levar uma pessoa pelo direito que eu tenho de fazê-lo.

Bem mais serenamente Samuel respondeu:

_ Então não conhecia Deus antecipadamente essa vontade que você tinha de levar alguém dessa localidade e me trouxe aqui para obrigá-lo a aparecer, fazendo com que você acreditasse ser o dono da situação quando na verdade Ele me interpôs no caminho de vocês para que nenhuma vida seja levada deste lugar desnecessariamente? E assim o amor de Deus se manifesta mais uma vez livrando estes moradores da lâmina da gadanha e das garras das potestades.

O Acaso não teve respostas para dar e Samuel continuou em seu discurso:

_A princípio não entendi a causa de nosso encontro aqui sob o manto pesado dessa chuva, mas agora vejo claramente que foi por vontade de Deus. Não existem coincidências, e sim providências.

A água corria com mais força do que antes, a chuva tinha aumentado de intensidade e Samuel fazia força segurando-se contra o muro da casa, de onde tirara as três pessoas, para não ser levado pela correnteza; o Acaso permanecia parado no meio da rua submersa que mais se assemelhava a um rio furioso.

_ Vou levar alguém!_Berrou o Acaso._ Não importa o que você diga, e quando estes mortais retornarem do lapso interrompido atribuirão a mim o fato. Receberei a glória e aprisionarei um pouco mais suas mentes e corações. Assim é; tal como sempre foi e o será continuamente.

Certamente muitas coisas se perderiam durante aquela chuva violenta, Samuel sabia disso; e imaginava tristemente quantas potestades como aquelas estariam nos mais diversos lugares da cidade e do Estado vitimando e aprisionando outras pessoas. Mas ali naquele local nenhuma vida se perderia, tinha convicção absoluta de que para isso fôra levado para lá, sem perceber que tudo fazia parte de um maravilhoso propósito em prol daqueles moradores.

_Vá._ Ordenou o jovem._ Retire-se para suas regiões, porque você foi derrotado pelo Nome do Senhor; Aquele que provou mais uma vez saber todas as coisas, até as suas intenções.

Visivelmente enfurecido o Acaso, com ambas as mãos, chocou pela última vez a ponta do longo cabo da sua arma contra o chão sob as águas e no momento seguinte Samuel ouviu o jovem que ele havia resgatado respondendo ao seu comentário como se nada tivesse acontecido. O lapso interrompido findou-se; as potestades, como corvos da tempestade se foram, as pessoas não faziam a menor idéia do que acabara de acontecer, do perigo que suas vidas correram e do livramento poderoso que Deus as concedeu naquele dia.

Repentinamente o chão cedeu abrindo uma enorme cratera que engolia as águas como a boca de um grande dragão; bem no lugar onde o Acaso golpeou. Naquele momento Samuel concluiu que era daquela forma que ele levaria uma ou até mais pessoas, tragando-as para baixo do solo juntamente com a água da chuva; se o jovem tivesse sido vencido, aquela cratera teria se aberto sob os pés de um deles, mas graças a Deus não ocorreu.

Até a próxima...

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 09/11/2007
Reeditado em 15/11/2007
Código do texto: T729505