O CORCUNDA DO JUAZEIRO

Na minha infância, eu morava no bairro Juazeiro. As ruas, naquela época, não tinham calçamento, eram de barro. À tardinha, a garotada toda da vizinhança se juntava para brincar de pega-pega, “se esconde” ou para bater uma boa pelada. Claro que eu não ficava de fora desses momentos.

Nessas brincadeiras, a alegria era geral. De longe, ouvia-se nossa algazarra. Eram gritos, risadas e, na hora do futebol, brincadeira mais esperada, a poeira subia alto. Isso era visto com bons olhos por todos, ou melhor, por quase todos.

A exceção era um vizinho velho que parecia sempre estar de mal humor, vivia reclamando da poeira que fazíamos. Sempre de semblante grave, cara fechada e dono de uma corcunda enorme que o fazia andar encurvado e que, aos nossos olhos, fazia dele uma criatura assustadora. Todos nós morríamos de medo daquele velho.

Como o vizinho nos fazia lembrar de uma história que ouvimos na escola, sobre um corcunda que vivia em uma igreja no estrangeiro e que trabalhava tocando um sino, logo o apelidamos de Corcunda do Juazeiro. Lógico que o velho não sabia disso, porque não ousávamos chamá-lo assim para ele ouvir.

Certa vez, quando jogávamos futebol em meio à poeira e aos gritos animados dos peladeiros, alguém, que não lembro quem, chutou tão forte a bola que ela passou pelo muro e foi cair em uma das casas da vizinhança. Porém, não era uma casa qualquer, era justamente a moradia do Corcunda do Juazeiro.

O silêncio foi geral. Nunca vimos aquele velho sequer dar um sorriso. Parecia que não tinha família, ninguém nunca o vira recebendo visitas. Quase não saía de casa. As poucas vezes que o víamos fora, ou estava pondo o lixo na calçada para a posterior coleta ou estava fora simplesmente para reclamar das brincadeiras e da poeira. E agora nossa única bola havia caído em sua casa.

O silêncio, em pouco tempo, foi quebrado por alguém que sugeriu: “Vamos resgatar a bola das garras do monstro corcunda!”. Todos rimos com a maneira repentina e espontânea que isso foi dito, mas logo o riso cessou e deu lugar a um calafrio. Eu senti e, pela expressão apreensiva no rosto dos outros, acredito que eles também tiveram a mesma sensação.

A questão era: quem seria o corajoso e como faria tal feito? Um falou: “Vamos bater no portão e pedir com educação!”; outro: “Vamos rezar para conseguirmos uma bola nova, isso sim!”. Porém, a solução escolhida foi a última a ser sugerida: “É melhor um de nós pular o muro, entrar na casa, pegar a bola e sair, sem ser visto. E tenho um plano que pode dar certo!”.

Assim, depois de todos concordarmos, tiramos “zerinho ou um” para ver quem ia ser o “felizardo”. Nunca esqueço o susto que senti na hora que fui o escolhido para tão árdua missão. O plano era simples: dois meninos ficariam espionando em um canto do muro, um subiria nos ombros do outro para olhar a casa por dentro. Da mesma forma, outros dois fariam no outro canto do muro. Se ninguém avistasse o velho pelas áreas abertas da casa, então seria o momento certo para o resgate.

E assim foi feito. Deram-me o sinal, e eu, com toda a destreza e energia de criança, pulei facilmente o muro, indo parar dentro da residência do Corcunda do Juazeiro. Saí, em seguida, à procura da bola, tentando avistar onde ela havia caído, quando, de repente, vi os meninos abandonarem depressa seus postos de guarda e senti uma mão tocar meu ombro.

Sem me virar, passei a imaginar várias coisas ruins. Pensei: “chegou o meu fim!” Comecei a me tremer, a tremer tanto que não vi mais nada. Acordei com um cheiro forte de álcool. Aos poucos abri meus olhos, fui recobrando a visão. Reconheci minha mãe parada a me contemplar, mas não reconheci o lugar onde estava.

Quando me restabeleci, ouvi o relato do que havia acontecido e compreendi toda a situação. O Corcunda do Juazeiro me flagrou em sua casa e, antes de me fazer qualquer questionamento, eu desmaiei. Porém, ele me segurou antes que eu desabasse desacordado no chão e me trouxe para dentro de sua casa, que era o lugar desconhecido onde eu me encontrava naquele momento.

Além disso, ele correu rapidamente lá fora e pediu para os meninos chamarem minha mãe. Em meio ao pavor que assolou a garotada só em ver o Corcunda sair para chamá-los, um dos meninos, não se sabe como, acabou entendendo que o velho queria só ajudar. Correu então até minha casa e chamou minha mãe.

Ao chegar e me ver desmaiado, ela tentou manter a calma e foi logo perguntando se o vizinho tinha álcool em casa. Ele prontamente trouxe um litro da substância, que ela abriu e fez com que eu cheirasse. Depois explicou que esse era um costume conhecido dos mais velhos: o forte odor do álcool ajuda a recobrar os sentidos em caso de desmaios. Foi isso, portanto, que me fez despertar.

A partir desse dia, passamos a conhecer melhor aquele velho vizinho. Descobrimos que sofria de uma grave alergia, por isso se incomodava tanto com a poeira que fazíamos na rua. Ele morava sozinho, porque era viúvo e sua única filha casou-se com um gringo e foi morar no exterior, onde teve dois filhos.

A casa do velho era repleta de fotos da filha e dos netinhos, que embelezavam as paredes e davam vida ao lugar. Ele me contou que quase todos os dias falava com eles por telefone, por isso quase não saía à rua. Na oportunidade, também conheci o senhor Antônio. Esse é o nome daquele que um dia, maldosamente, chamamos de Corcunda do Juazeiro.