PROPAGANDA ENGANOSA

*Por Herick Limoni

Lá estava ele, parado no semáforo, como ocorria todos os dias, a caminho do trabalho. Eram por volta das oito horas da manhã. O sol já reinava inclemente em mais um dia daquele que era já considerado um dos outonos mais quentes dos últimos anos. Seria mais um dia de calor intenso. E assim como ele, lá também estava ela, posicionada como sempre no canteiro central, carregando nas mãos algumas dezenas de panfletos. Era morena clara, alta, tinha um corpo bonito, esguio. Vestia-se toda em preto. Tênis, calça legging, regata. Para compor o visual de mulher enlutada, uma máscara também na cor preta, cobrindo boca e nariz. Tinha olhos vibrantes, fascinantes. Em algumas ocasiões, e por poucos segundos, os dela se cruzavam com os dele. De uns tempos para cá, sem saber explicar o porquê, ele passou a prestar mais atenção nela. Todos os dias a contemplava, parada no canteiro central, alisando as longas madeixas, que iam até próximo à cintura. Seus cabelos eram negros, com algumas mechas tingidas de louro. Não era difícil notar que ela nutria especial atenção a eles. Ou talvez fosse alguma espécie de tique. Jogava-os por sobre o ombro e seio esquerdos, e ficava longos minutos a alisá-los, passando as mãos espalmadas, com os dedos abertos, por entre aqueles fios, como que a penteá-los. Os movimentos eram sempre de cima para baixo, e ela sempre acompanhava aquele ato com seu par de olhos castanhos. Enquanto estava naquele vai e vem de mãos, o semáforo abria e fechava algumas vezes. Talvez - pensou ele - ela se vestisse daquela forma para realçar ainda mais os cachos tingidos de louro. Não havia dúvidas: de todo o conjunto, aquela mulher gostava mais de seus cabelos.

E assim seguiam-se os seus dias. Já saía de casa pensando na moça dos panfletos. Estava tão fascinado por ela que ficava bastante irritado quando dava o “azar” de pegar o semáforo aberto, frustrando aqueles poucos, mas deliciosos, segundos de contemplação. Tinha curiosidade de saber o que havia escrito naquele material que ela entregava. Apesar de passar ali quase todos os dias, nunca havia sido contemplado com um. Chegava mesmo a sentir inveja dos poucos sortudos que tiveram um breve contato com ela. Poucos porque, como dito, ela mais ficava tratando dos seus cabelos do que de fato trabalhando. Fazia daquele espaço sua passarela pessoal. Era difícil não notá-la no meio daqueles vendedores de balas, pipocas, água, amendoins. Ela era diferente de todos, pois além de não vender nada, era a figura mais bonita que orbitava naquele cruzamento.

Certa manhã, olhou para onde ela costumeiramente ficava e não a viu. Sentiu grande incômodo com aquela situação. O que haveria de ter acontecido? Estaria ela doente? Teria sido despedida? Essa última hipótese lhe pareceu bastante plausível, visto que ela pouco trabalhava e o patrão poderia ter descoberto isso. O semáforo abriu e seu dia transcorreu um pouco mais triste. Sentiu uma espécie de desesperança. Como seriam seus dias futuros sem sua presença? Precisava dela para alegrá-los.

Na manhã seguinte, voltou a sorrir. De início, não a vira novamente. Mas tão logo arrancou após a abertura do semáforo, viu, pelo retrovisor direito, que ela havia mudado de lugar. - É por isso que não a vi ontem, pensou ele. Ela agora havia se instalado na esquina, do lado direito de quem segue. Havia ali a sombra de uma marquise onde podia se esconder do sol. Talvez fosse esse o motivo que a fez mudar de lado. Não importava. Seguiu seu caminho com um sorriso nos lábios e com a certeza de que agora, com a possibilidade de ficarem mais próximos, teria mais chances de um contato com ela.

Vários dias se passaram, e nada dela se aproximar para lhe entregar o tão almejado panfleto. Já havia imaginado diversas vezes o que lhe diria:

- Oi, te vejo sempre por aqui. Reparei que não usa aliança. Você é muito bonita. Poderia me passar seu telefone?

A conversa teria que ser breve e direta, afinal seriam poucos segundos até que a luz verde do semáforo surgisse novamente. Porém, cada vez que por ali passava e ela não se aproximava, sua angústia aumentava. Em uma oportunidade e já impaciente com a desfeita da moça, buzinou duas vezes, a fim de chamar sua atenção. Contudo, sua tentativa infrutífera serviu somente para atrair os vendedores que estavam por perto.

- Quer bala senhor? São 10 por R$ 2,00.

- Fala patrão, vai uma água geladinha aí?

Sua frustração era visível. Seus dias se resumiam agora em pensar naquela moça e nos panfletos que carregava. O que estaria escrito neles? Por que poucos eram os escolhidos? Haveria neles alguma mensagem secreta cujo teor não lhe poderia ser revelado? Eram muitas as possibilidades que passavam por sua cabeça e que poderiam explicar porque ela o ignorava. Mas estava decidido a resolver a questão. Na manhã seguinte, ele faria contato com ela, custasse o que custasse.

Dormiu mal à noite. Refez em pensamento a cena da aproximação e o que diria a ela por diversas vezes. Levantou-se por mais de uma vez para ir ao banheiro. Seu estômago sofria tal qual ao de um ator iniciante. Rompida a madrugada e chegada a manhã, levantou-se, tomou um banho rápido e engoliu alguns poucos goles de café. Estava sem fome. Pegou uma banana com a casca já enegrecida na geladeira e saiu, confiante e firme.

Ao chegar próximo do local onde ela sempre se encontrava, percebeu que o trânsito estava bem pior que o habitual. Havia uma fila de carros que formavam um pequeno, mas insistente, congestionamento. O fluxo seguia a passos lentos, em baixíssima velocidade. Estava tão ansioso por aquele momento que o atraso causado pelo congestionamento lhe irritava profundamente. Porém conseguiu, ainda de longe, avistá-la. Lá estava ela, linda, toda vestida em preto, alisando as madeixas de duas cores. Aquilo era para ele como que um ritual de acasalamento. Tinha para si que aquele movimento de alisar os cabelos nada mais era que uma tentativa de seduzi-lo. Teria a chance de contemplá-la por mais tempo, antes que pudesse, enfim, interpelá-la. Ficou por instantes extasiado com aquele movimento dos longos cabelos dela. Naquela manhã, em especial, os raios do sol que incidiam sobre as madeixas a deixavam ainda mais bela. Era a visão do paraíso!

Com seu instinto de animal selvagem, continuou com os olhos fixos na sua presa, o que lhe permitiu ver, em dado momento, ela abaixando-se próximo à porta de uma loja que se encontrava fechada para pegar uma garrafa de água. Sabia ele que naquele momento conseguiria ver, por inteiro, o rosto daquela mulher que há meses desejava. Coincidiu de no exato momento em que ela retirava a máscara para sorver alguns goles de água, ele estar passando bem em frente ao local em que ela estava. Era de fato um golpe de sorte. Com o veículo ainda em movimento, fez um giro de 45 graus com a cabeça para a direita, de modo que pudesse gravar na memória aquele rosto angelical. Tão logo ela baixou a garrafa d’água, não pode ele acreditar no que via. A metade inferior do rosto era completamente destoante da metade superior. Não pareciam ser da mesma pessoa. O nariz grande e arredondado não combinava com os traços finos da face. A boca, excessivamente murcha e pálida, denunciava um sério problema de estrutura óssea ou a ausência completa de dentes. Por um instante fez uma rápida comparação com aquelas letrinhas miúdas nos rodapés de contratos.

- Propaganda enganosa! Exclamou.

Seria ela uma versão contemporânea do famoso personagem de Mary Shelley? Pensou.

Tão logo passou pela retenção causada por um acidente e o trânsito começou a fluir, acelerou seu veículo sem olhar para trás. Naquele exato momento, a vontade de saber o que havia escrito nos papéis que ela carregava esvaiu-se, e junto com ela, a paixão que começava a nutrir pela moça do sinal. E quando já estava a uma distância segura, sentenciou, resoluto: certamente não haveria de ter nada importante naqueles panfletos! Descascou a banana, comeu-a em duas bocadas e jogou a casca pela janela.

*Mestre e Bacharel em Administração de Empresas, escritor amador e entusiasta da literatura.

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