O Popstar

N/A: escrevi com carinho, para me divertir. se não gostar, não precisa ser desagradável como uma personagem do próprio conto, feche a página. mas quem gostar, claro, participe. =)

O Popstar

Tudo começou pouco antes daquelas férias de verão. Em meio à chegada da maioridade, do alistamento militar obrigatório e do vestibular, cresceu um desejo muito grande no coração de meu irmão: o de ser popstar. Nada mais apropriado, posto que o cenário fonográfico estava favorável e vontade não lhe faltava.

Seria um longo trabalho: pensar em um nome artístico decente, fazer aulas de canto, estudar música, compor as próprias letras, atentar-se ao que o público-alvo consumia e, claro, a cereja do bolo, encontrar um empresário de boa índole que o auxiliasse a realizar aquela ambição porque todo talento do mundo pode não ser o suficiente quando não se tem uma boa rede de contatos.

— Você acha que eu tenho cara de popstar? — Quis saber o meu irmão.

— Acho... — Respondi, pois certamente era o que ele queria ouvir de mim.

— Seja sincera...

— Mas eu tô sendo sincera...

Foi a vez de perguntar à minha mãe.

— Eu tenho cara de popstar?

Naquela época os reality shows que lançavam boy e girl bands estavam super em alta, o Rouge estava no auge, recentemente o Br'Oz tinha lançado o álbum de estreia. Destaque também para o jovem Felipe Dylon, que vinha chamando a atenção de menininhas do Oiapoque ao Chuí.

***

Com 15 anos recém completados, sonhava muito em ser atriz, tinha desencanado da Meteorologia por não ter gostado nadinha de estudar física no primeiro ano. Escrevia minhas novelas e me imaginava sendo as minhas protagonistas, minhas músicas preferidas eram temas das personagens, mas para passar de ano e sair da escola, precisava manter o foco.

Meu irmão era melhor em exatas e me ensinar o conteúdo programático que caiu na prova lhe ajudava a encarar o vestibular com mais confiança. Medicina Veterinária era bastante concorrido, precisava-se estudar muito para conquistar uma vaga.

Em meio àquelas ruidosas transições de uma fase à outra da vida, meu irmão permitiu-se sonhar em ser cantor. Desisti da Meteorologia sem nem sequer pestanejar, porém o primogênito parecia obstinado em conquistar o que havia se proposto a fazer e nada o persuadiria a tirar aquela ideia da cabeça.

Um grande e especial presente de aniversário, chegado duas semanas após a data, foi muito especial: acordei naquela manhã de 29 de novembro com lambidinhas quentes de um filhote de pinscher, jurei que era sonho, e não era.

Junto à chegada do querido Markito (e todas as travessuras de filhote inclusas no pacote), meu irmão comprou uma camisa florida azul pelo menos um número maior do que o tamanho apropriado e voltou do camelô com um chapéu parecido com aqueles que o Professor Girafales usava no seriado Chaves, estava obstinado a seguir os passos do Michael Jackson, de quem era fã declarado.

2

Só fui à escola no dia 3 de dezembro porque meus amigos muito insistiram. Todos estavam sem uniforme, em clima de confraternização... nem todos... aqueles que teriam de fazer provas de recuperação e encarar o conselho de classe sabiam que o tempo corria contra eles, o que felizmente não era o meu caso.

Participei de dois amigos ocultos e precisava entregar os presentes à Alice e a Deh. Para a primeira comprei um par de brincos e para a segunda o mais recente lançamento da Britney Spears, posto que não encontrei a bandana preta que ela almejava, porém soube da admiração dela pela popstar norte-americana e nem preciso alongar este parágrafo para descrever a alegria nos olhos dela ao desembrulhar o pacotinho.

— Não acredito! Não acredito! Como é que você sabia que eu queria? Cara, obrigada, obrigada, obrigada!

Era para eu ter recebido da minha amiga oculta um simpático elefantinho de pelúcia, porém ela teve um imprevisto de última hora e fiquei com as mãos abanando.

No começo do ano era modinha entre as meninas populares andar com um bichinho de pelúcia no bolso da calça e eu não fiz por menos, levei o pequeno e querido Fante numa quarta-feira em que não tive o último horário e por arrumar o material no piloto automático, só me dei conta da ausência do elefante quando voltei para casa.

No dia seguinte verifiquei minha carteira porque deixei-o pendurado num ganchinho, perguntei ao pessoal, ninguém sabia me responder. Caí em prantos, pedi a uma amiga que conhecia um amigo do turno da noite que estudava naquela sala para procurar o bichinho, garimpei o departamento de achados e perdidos e o desespero apenas cresceu.

Minha amiga oculta pode nunca ter visto o Fante — o pobrezinho foi popular por um dia e sumiu —, mas demonstrou por mim sincero afeto ao tentar ao menos devolver-me aquele que seria o Fante Júnior.

Quando meu irmão adentrou a antiga escola para me buscar, todos viram o Professor Girafales num traje mais despojado.

A Samanta, do grupo da Alice, sem condições de dar um presente mais caro, ofereceu um cartão de natal e o carinho contido nas palavrinhas escolhidas para enfeitá-lo foi muito mais marcante.

Meus amigos também queriam saber tudo sobre o meu cachorrinho:

— Como é que ele é?

— Ele morde?

— Ele é pequenininho?

— É macho ou fêmea?

— Como é que ele se chama?

— Ele vai dormir com você?

— Esse pessoal aí da sua geração não sabe o que é música de verdade! — Reclamou o meu irmão, como de costume.

Meu irmão nunca curtiu o que fazia sucesso naquela época e parecia recriminar quem o fazia.

Eu me sentia um peixinho fora d'água quando as meninas começavam a falar de Britney Spears e axé, nunca fui fã, porém se começasse a tocar Charlie Brown Jr, Red Hot Chili Peppers, Raimundos, Linkin Park ou as músicas de balada, eu me animava.

Quando tocava Felipe Dylon no rádio e minha irmã aumentava o volume, ele ralhava, se passava o clipe no Multishow, mudava de canal, se ela baixava a música, apagava-a.

Mamãe ficava com as mãos dormentes, passando o telefone de um ouvido ao outro. Nos últimos meses havia estreitado os laços com uma prima por parte de mãe e a mulher, que trabalhava de recepcionista numa clínica de estética, passava a tarde inteira batendo papo.

Era só a novela da tarde começar que o telefone tocava e às vezes era quase seis horas e a ligação ainda não tinha acabado. Numa ocasião, meu irmão precisou intervir, foi até o orelhão e ligou para casa porque esse era o combinado para despistar a faladeira.

Tinha dias que nem isso resolvia, pois ela aguardava uns vinte minutos e retornava à ligação, querendo saber quem era, o que queria, afinal de contas, mamãe nunca tencionou interromper o monólogo. A mulher perguntava e respondia às próprias indagações, consumindo pulsos sem moderação.

A papa-pulsos se autodeclarava "clone" da Angelina Jolie, mas assemelhava-se mais com aquela bruxa do Abracadabra.

— O que fazem hoje em dia não é música — desabafou meu irmão numa noite em que estávamos ouvindo rádio e tocou Faz parte do meu show, do cantor Cazuza.

De fato, aquela letra é uma poesia, não um hit chiclete que toca três meses até saturar e depois fica cringe. Eu concordaria com meu irmão mais velho se essa conversa fosse ambientada atualmente.

3

Todos nós já sabíamos de cor e salteado a ordem daquele álbum da Donna Summer que meu irmão escutava todos os dias religiosamente desde que o comprou porque estava obcecado em completar a discografia dela, depois tinha Michael Jackson (ele chegou a ter todos os álbuns do artista, depois vendeu tudo para o sebo), Barry Manilow e Gino Vanelli, esses dois quando batia a bad.

Volta e meia o primogênito chegava com uma pilha de papéis sulfite grampeados e pedia para todos lerem, lá estavam as letras de seus futuros sucessos, de fato, elas eram boas, rimavam, tinham sonoridade, não eram versos desprovidos de sentido.

Se quem não é visto não é lembrado aplicava-se a este caso, a divulgação seria de grande valia.

Nunca é demais ressaltar que nesses tempos não havia engajamento no Instagram, nem como criar um canal no Youtube, o correio eletrônico ainda não estava ao acesso de todos e o saudoso Orkut ainda nem havia sido lançado.

Parece estranho pensar num mundo sem redes sociais, mas, sim, ele existiu.

***

As corujas de plantão que gostavam de ouvir rádio até altas horas podiam sintonizar na estação X porque da meia-noite até as três da manhã havia um locutor ao vivo ora interagindo com os ouvintes através das ligações, ora colocando músicas para tocar.

Meu irmão passou o final de semana inteirinho ocupado, o que era normal, época de vestibular, tantos pensamentos, tantos compromissos para dar conta e eis que dias depois ele nos convidou a escutar o primeiro single dele.

Mesmo dispondo de poucos recursos para editar o áudio gravado com o microfone do computador, foi feito um excelente trabalho.

Naturalmente as férias de verão serviriam para que o popstar pudesse dedicar-se com mais afinco à carreira, algo quase impossível na correria de um ano letivo, por exemplo.

Meu irmão era uma dessas corujinhas e se pessoas faziam do programa romântico das dez da noite um Tinder à moda antiga, por que não usar o espaço das madrugas para quem sabe formar uma banda? O Br'Oz estava super em alta, o Felipe Dylon arrancava suspiros das garotinhas, tentar não tirava pedaço.

O garoto não era nenhum tenor, nenhum rouxinol, porém eu não era ninguém na ordem do dia para destruir um sonho, simplesmente o apoiava a acreditar nos próprios sonhos, era tudo que estava ao meu alcance fazer.

Para ser bem honesta, eu acreditava que meu irmão conseguiria alcançar o estrelato, que se ele sonhasse com aquilo de todo o coração, haveria de realizar, nem que demorasse um pouquinho.

***

Nossas viradas de ano eram sempre iguais, no entanto, daquela vez não foi. Tia Rosa, irmã do falecido pai da minha mãe, quis passar alguns dias em nossa casa e em pleno dia 31 de dezembro meu pai foi buscá-la na rodoviária no meio da tarde, isso depois de enfrentar uma fila quilométrica no mercado para comprar os itens que faltavam para a ceia.

Feito isso, Tia Rosa nos cumprimentou e como ela e minha avó não se viam havia anos, pegamos a estrada para a hóspede visitar aquela amiga de longas datas.

De volta para casa, papai foi assar linguiças, carne, mamãe e a tia colocaram as conversas em dia e a música que marcou bastante aquele réveillon foi Zumbizera – MC Pelé.

4

Da janela era possível assistir à queima de fogos, no entanto, meu irmão, insatisfeito, convidou-me para descer, aproveitando que meus pais estavam dando mais atenção à Tia Rosa.

Descendo, tudo que encontramos foi a rua deserta se não fosse por um carro ou outro que parava no sinaleiro (aqui nós falamos assim) e as pessoas, quer por já estarem meio bêbadas ou contagiadas pela esperança de começar vida nova, desejavam-nos felicidades.

Meu irmão fazia planos para 2004, construía castelos altos, imponentes, pois nos primeiros minutos do novo ano, por mais clichê e simplista que pudesse parecer, tudo era possível.

Quando subimos, encontramos nossos pais furiosos na sala:

— O que vocês estavam fazendo na rua? — Bronqueou papai.

— A gente queria ver os fogos... — esclareci, mas o argumento não foi bom o suficiente para serenar os ânimos acalorados.

— Eu não sabia de nada... — acrescentou a minha irmã, chorando.

— Você só tem 15 anos, não podia estar lá embaixo...

— Mas não aconteceu nada! — Protestei.

— Mas podia ter acontecido! — Rebateu mamãe.

Tia Rosa atalhou:

— Cês num pula as sete onda?

— Aqui não tem praia, tia. — Respondeu mamãe.

— Posso pulá?

— Não.

— Amarelo é bão pra dinheiro, dinheiro...

— Nunca mais façam isso! — Advertiu papai.

Após esse pequeno desentendimento, tudo voltou ao normal. Meus pais, cansados, recolheram-se, mas antes mamãe preparou a minha cama para a Tia Rosa, enquanto eu me ajeitei no sofá. Meu irmão e eu marcamos de assistir a um filme de comédia que começaria por volta das duas e meia da madrugada, estávamos esperando para darmos boas gargalhadas e de fato demos.

Enquanto ela estivesse hospedada em nosso lar, eu dormiria na sala. Da minha parte, sem objeção, porém alguém estranhou (e muito) a rotina...

Sim, ele mesmo.

Markito.

A toca azul-escura com detalhes de ossinhos e patinhas nas laterais ficava no espaço entre minha cama e a da minha irmã. Ele, acostumado a pular e arranhar os cobertores todas as manhãs, tomou um susto quando em vez de mim, encontrou a tia-avó.

Levamos Tia Rosa para visitar a minha bisavó na tarde do primeiro dia do ano. A reunião de família transcorreu sem nenhum embaraço, claro, se não fosse o ataque de sincericídio da visitante ao folhear o álbum de fotos da matriarca:

— Nossa, como a senhora tá veinha! Tá veinha, veinha...

Tia Rosa não era uma pessoa maldosa, muito pelo contrário, não dizia certas coisas para magoar, porém nem sempre era compreendida e pelos apelidos nada agradáveis era chamada pelas costas.

— Nunca mais traga essa mulher na casa da minha mãe... — vociferou a Rádio Pirata, uma tia da minha mãe que não só aumentava os fatos como também dava uma inventada legal. — Ela chamou a minha mãe de velha.

Pobre da minha mãe, nem estando casada e com filhos grandes escapava de levar sermão pelo telefone.

— Nunca mais eu quero que essa mulher pise na casa da minha mãe. Que falta de respeito! Que ofensa!

Tia Rádio Pirata era famosa por fomentar cada alarde mais insano do que o outro e enquanto aquele jornal não embalasse algum peixe, remoeria algo que Tia Rosa disse por dizer, como uma criança pequena, algo que nem deveria ser levado em consideração.

Figurinha carimbada em velórios e hospitais, RP sempre contou com "fontes seguras" e naqueles tempos também estava com um pé no universo musical.

Ela e o marido eram empresários de um grupo de pagode e não se cansavam de repetir:

— Guardem esse nome. Vocês ainda vão dizer que ouviram falar deles... — garantiu a mulher, sentindo-se a própria empresária dos grandes talentos da música.

Rádio Pirata comprou um aparelho de karaokê e vivia convidando a família inteira para soltar o gogó. Até aí, nada de anormal, todavia, mais tarde, caçoava dos "calouros" pelas costas.

Enquanto empresariados pela tia de mamãe, os pagodeiros mal recebiam convites para tocar em churrascarias, porém logo depois que o contrato foi desfeito, os caras começaram a abrir shows e até gravaram um disco.

Se meu irmão buscava o estrelato, seria melhor pensar noutra pessoa para o cargo de empresário.

Tia Rosa foi embora de nossa casa no dia seguinte e, de tanto que gostou da estadia, prometeu "vir mais vezes".

Naquele verão, minha mãe e minha irmã não perdiam um só capítulo da novela Canavial de Paixões e nosso cachorrinho Markito crescia a olhos vistos, travesso, saudável, um pouco (muito) chantagista quando o assunto era comida e mastigava feito uma draga, mesmo pequeno, deixava qualquer São Bernardo com um olhar pasmo.

Não era raro meu pai correr atrás do cãozinho, na pífia esperança de não perder o cachorro-quente, o hambúrguer e até o pedaço de alcatra. O danado se enfiava dentro da toquinha azul na qual dormia e quem tentava colocar o dedo lá dentro, levava uma mordida das feias.

4

No início das férias, papai nos levou para prestigiar a tradicional Festa do Pêssego, em Araucária, e Markito pegou a estrada conosco. Passeando pelo local, chamou a atenção e ganhou até um pacote de ração grátis por ser fotogênico.

Meu irmão seguia afinado nas inspirações e aquele ano seria um divisor de águas na vida dele. As expectativas projetavam que, vinte anos depois, uma foto ao lado dele valeria milhões.

Minha irmã e eu seríamos familiares de um artista, na escola nos abordariam para saber mais sobre a vida do grande popstar, pediriam autógrafo, CDs, mandariam cartinhas de todos os tamanhos, desde as breves até aquelas quilométricas.

Certa tarde, Markito escutou a campainha e se escondeu debaixo do armário da cozinha.

Mamãe atendeu a porta: era a papa-pulsos e vinha acompanhada da filha.

Mais cedo, a progenitora estava às voltas para assar um bolo de banana, preparar a mesa e deixar a casa nos trinques para receber as visitas. No entanto, visitas se anteciparam em uma hora!

— Tô sentindo cheirinho bom de torta de banana! — Exclamou a papa-pulsos. — Preparou só porque eu vinha, né? Mas também, né? Tá recebendo a Angelina Jolie...

— É um cachorrinho? — Perguntou a moça.

Respondemos que sim.

— Que bonitinho...

— Ele é assim mesmo ou está acanhado porque tem visita? — Inquiriu a papa-pulsos. — Quanto tempo ele tem?

— Quatro meses! — Respondi.

— Não vai crescer muito, vai?

— Pinscher não cresce muito. — Acrescentou mamãe.

Não adiantava chamar, o danado não dava as caras.

Markito sentia-se bastante à vontade na maior parte do tempo, no entanto, não gostava muito de mudanças na rotina e apesar de não morder nem nada, estranhava bastante as pessoas que não faziam parte do círculo familiar, embora demonstrasse quando gostava de alguém, aproximando-se devagarinho, acalmando-se, até, por fim, lamber e chamar para brincar.

— Vem cá, seu bonitinho... — A moça, de cócoras, bem que tentou atrair a atenção de Markito, mas ele só saiu de debaixo do armário quando meu pai pôs a mesa.

Decidida a agradar o animal, durante o café, ofereceu-lhe mortadela.

Nós duas conversávamos sobre assuntos afins e amenos. Ela disse que quando eu chegasse a ter a idade dela, os meninos estariam mais maduros e conseguiriam enxergar os valores que aos 15 não levavam em consideração.

Ela e o meu irmão tinham um ano de diferença apenas, viviam de certa forma a mesma fase da vida, porém a relação era bastante superficial.

Conversa vai, conversa vem e meu irmão, tentando socializar-se com a moça, convidou-a para ver as composições dele.

Sentada na cama, folheando as composições com certo desinteresse, ouviu a música do meu irmão no Windows Media Player e ouviu a pergunta de meio milhão de reais:

— Você acha que eu tenho cara de popstar? — Quis saber o meu irmão, com expectativa pela resposta.

Ela nem sequer o fitou.

— Não. — Respondeu monocórdica.

— O que você achou das minhas letras?

— Muito superficiais...

E desandou a se gabar de ser uma das poucas jovens que não seguia modinhas, citou dezenas de artistas antigos, agindo como se meu irmão não fizesse a menor ideia de quem era Michael Jackson.

Não havia clima para dar prosseguimento à conversa, não à toa ela deu um jeito de sair do quarto do meu irmão, porém passou também a me ignorar.

Que existia certa animosidade entre eles, existia. Ela se sentia com o rei na barriga por cursar Letras e tinha certo prazer em desprezar tudo, depois choramingava pelos cantos que na faculdade ninguém gostava dela, entretanto, quando tinha a alternativa de ser gentil, optava pelo antônimo.

A sinceridade é uma virtude admirável, desde que bem dosada, o que não era o caso. Mesmo que tivesse achado meu irmão desafinado, poderia sugerir aulas de canto, algo do tipo, não simplesmente jogar um balde de água fria na cabeça.

Fosse ou não um capricho de adolescente, que permitido fosse sonhar, até porque onde é do meu conhecimento, sonhar não se configura em uma prática criminal, tampouco torna o sonhador inadimplente.

E para fechar o dia com chave de ouro só que não, a mortadela não caiu nada bem para Markito. Por algum motivo, ele não quis aproximar-se das visitas porque quando vovó nos visitava, ele abanava o rabinho, pulava, lambia, pedia carinho. Por intuição devia saber quem gostava de nós e quem era hábil na arte de fingir.

A expectativa da minha parte era grande, nos últimos meses eu não ouvia falar de outro assunto.

Naqueles tempos meu pai ficava uma arara quando chegava a fatura do telefone pelos correios porque volta e meia meu irmão era um ávido consumidor de pulsos e muitos deles eram utilizados para a estação X, aquela do programa das madrugadas.

Camisa florida com chamativas estampas florais, chapéu preto semelhante ao do Professor Girafales, trocar a noite pelo dia, banhos faraônicos, bem, já era do conhecimento da nossa família a excentricidade do meu irmão e se todo artista que se preze tem manias extravagantes, meio caminho andado.

O verão se passava e meu irmão estava cada vez mais determinado a lançar-se como cantor para a cidade toda, afinal de contas, todos os grandes um dia foram pequenos.

5

Quem realmente quer algo, sempre dá o seu jeitinho.

Meu irmão descobriu o e-mail do locutor, escreveu uma mensagem para ele e também pesou o fato de ser ouvinte de longas datas, participar de vez em quando.

O pedido era bastante peculiar: o radialista precisaria telefonar para a nossa casa, afinal de contas, quando o popstar despontasse para o topo das paradas, seria uma ótima recomendação àquele que deu espaço para o jovem talento expressar-se.

Gabiru, esse era o codinome do locutor, abriu uma exceção: atenderia ao desejo do garoto, sem prometer, claro, a que horas entraria em contato ao vivo, tanto poderia ser logo à meia-noite ou então perto do fim da atração, não se sabia, o jeito era escutar.

As boquinhas noturnas também não passavam despercebidas, nosso querido pinscher glutão parava no tapete da sala de jantar, mirava os olhos negros no pacote de bolachas salgadas e ameaçava abrir o berreiro se não ganhasse um belisquinho, riscava a pata dianteira esquerda se sentindo um Dobermann e sempre conseguia o que queria na base da chantagem, mas quem resistia àqueles olhinhos pidões?

Meus pais foram dormir por volta de onze e meia, meia-noite no máximo, hora que meu irmão saía do quarto para lanchar e o Markito corria em disparada até a cozinha para chegar antes. Eu adorava ver televisão e estava na sala esparramada no sofá de três lugares, como de costume.

O primogênito apanhou o telefone sem fio, colocou-o dentro da camiseta e levou-o para o quarto porque se tocasse, a casa inteira acordaria. Restava apenas aguardar o retorno do locutor.

O programa do Gabiru começou, o radialista atendeu aos ouvintes que ligaram pedindo música, fez as piadas de sempre e os irmãos em expectativa, eu com o meu radinho em forma de cebola, ele lá no quarto olhando para o mini system. E a hora se arrastava, fanfarrona que só.

Duas e vinte da manhã, faltando menos de quarenta minutos para o programa acabar, Gabiru finalmente telefonou para cá. Era o momento para meu irmão utilizar bons argumentos para provar que merecia ser o mais novo popstar da nação.

A trilha de fundo do programa era versão estendida de Tarzan Boy - Baltimora. Confiante, o jovem talento apresentou-se, disse o bairro em que residia, quantos anos tinha, respondeu algumas perguntas triviais...

Conversa vai, conversa vem:

— Hummmm... você canta, é? — Indagou o radialista, lá pelas tantas.

Meu irmão confirmou, pois a princípio o locutor não havia entendido bem, julgando que o ouvinte queria pedir alguma música. Pessoas pediam músicas todos os dias, não era nada de outro mundo.

— Que tipo de música você canta? — Questionou Gabiru.

— Eu tenho preferência por música pop...

— Hmmm... faz cover?

— Eu sou compositor também.

— Cantor e compositor? Bacana, rapaz! Quando tiver alguma música pronta, manda pra cá que a gente faz o jabá...

— Na verdade, eu tenho uma música pronta.

— Já tem disco gravado também?

Meu irmão deu uma risadinha.

— Não, ainda não, mas esse é o meu projeto pra esse ano.

— Faz quanto tempo que você decidiu ser cantor?

— Faz alguns meses... — contou o popstar. Aquela simples conversa telefônica poderia entrar para a posteridade e valer uma bagatela.

— E quem é a sua inspiração na música?

— Michael Jackson.

— Certo, certo... e você poderia mostrar essa música para a galera que está ouvindo o Gabiru?

E mesmo que a sua boca diga nãooooo

O seu olhar diz sim, sim, siiiim

O primeiro single do popstar seria a versão tupiniquim de uma música famosa da Donna Summer.

— Canta aí pra gente... — pediu o radialista. — Solta o gogó... é com muita satisfação que o Gabiru abre espaço para o mais novo popstar da nação e com vocês...

Meu irmão, sentindo-se o próprio Michael Jackson numa performance inenarrável na cerimônia do Grammy, soltou o gogó, oferecendo às corujas ouvintes o privilégio de conhecer um single inédito, acordando não só os meus pais como também o vizinho que morava no apartamento de baixo e se já não gostava do nosso cachorro, que dirá de ser despertado tarde da noite com um futuro popstar fazendo uma apresentação improvisada na estação X, no programa do Gabiru, ainda por cima...

Meu pai estava soltando fogo pelas ventas:

— Isso é hora de estar cantando? — Ralhou o meu pai. — São mais de duas e meia da manhã!

Meu irmão cantando, já se imaginando nas capas de revista, participando dos programas de palco e meu pai pisando duro corredor adentro.

Tum tum tum tum tum.

Nem terminei de ouvir a apresentação no rádio, desliguei minha cebolinha na pressa assim que ouvi meus pais resmungando, dei um jeito de me mandar para o quarto, ficando bem quietinha para ouvir tudo.

Tumtumtumtumtumtum.

O sobe som que se destacou foi o das batidas do meu pai na porta do quarto do meu irmão e não os aplausos que sonhava em receber.

TOC TOC TOC TOC TOC.

— Isso lá é hora de cantoria, rapaz?

Esbravejando, papai acrescentou:

— E ainda por cima usando o telefone, seu jaguara? Se no final do mês a conta vier alta, é você quem vai pagar! Não é você quem paga, mas o dia em que você tiver que pagar as contas com o seu próprio dinheiro, vai ver só uma coisa...

Quando acordei, fui convidada a prestar esclarecimentos sobre o inusitado ocorrido. Eu sabia que meu pai era contrário ao uso do telefone sem permissão, sobretudo durante a madrugada, no entanto, crente de que o Gabiru poderia ajudar o aspirante a popstar, fui conivente. A intenção, mesmo por linhas tortas, era boa.

— Como assim? — Indagou o meu pai. — Ele pediu pra rádio ligar pra cá?

Aquela era uma longa história...

— É porque ele ainda não paga as contas, mas quando tiver que tirar do próprio bolso, vai ver só o que é bom pra tosse.

Restava aguardar os interessados em entrar na banda do meu irmão, aquela que desbancaria os meninos do Br'Oz, deixaria Felipe Dylon recalcado e arrastaria multidões nos shows.

Ao menos deu tempo de o locutor passar o contato para os aspirantes a popstars e o primeiro passo, mesmo que desastrado, havia sido dado.

Se o pai do popstar, possesso e preocupado com a fatura de telefone esperava que "nenhum conhecido tivesse ouvido", o jovem talento ansiava o oposto.

Havia por parte do popstar uma preocupação com a formação intelectual, no caso de amanhã ou depois a fama, a popularidade e as consequências que vinham de carona com o sucesso não preenchessem o âmago. A princípio escolheu Medicina Veterinária e aquele tinha sido o segundo vestibular.

No primeiro certame, para um garoto cuja formação foi integralmente feita em instituições públicas de ensino, obteve um ótimo desempenho, contudo, insuficiente para ter o nome exposto naquele edital que fazia uns rirem e outros chorarem.

Duas horas da tarde pelo horário de verão, o site da universidade estava tão congestionado que mal carregava a tela inicial. Estávamos todos preparados para vibrar aquela conquista que honrava o sobrenome da família e todos os sacrifícios feitos pelos meus pais para que nada nos faltasse.

No canal 16 da tevê a cabo a lista de aprovados passava em formato de slides, porém até chegar a Medicina Veterinária levaria o dia inteiro.

Eis que num murmúrio quase rouco, meu irmão conseguiu acessar o site e ver a lista de aprovados no curso escolhido:

— Não passei!

Os sorrisos murcharam.

Se nós estávamos entristecidos, o vestibulando ainda mais. O silêncio que se fez durante o resto da tarde foi esmagador, parecia que alguém muito querido tinha morrido.

O telefone começou a tocar e não parou mais. Parentes que nem no Natal nos ligavam, queriam assuntar, sobretudo aquela prima da minha mãe cuja filha era pedante. Pelo fato de a moça ter entrado numa universidade pública, aproveitou o ensejo para tripudiar.

A vizinha fofoqueira tocou a campainha e indiretamente sabia que aquele silêncio era a confirmação daquilo que desejava, disfarçar o contentamento era uma arte que dominava.

Meu irmão não queria conversar, precisava de tempo para refazer-se daquele colossal tombo e embora ainda fosse bastante jovem para permitir-se sonhar, até para isso era necessário ter algum tostão no bolso.

Era mais do que certo que meu irmão seria aprovado em Veterinária, tinha feito cursinho, lido todas as obras recomendadas para a resolução das questões de redação e para quem não podia sonhar com faculdade particular, era um balde de água fria jogado na cabeça.

6

Um rapaz telefonou para cá, queria saber se o meu irmão estava e manifestou o interesse de entrar na banda, caso houvesse vagas. O pretendido era formar um quinteto, ainda faltavam três membros.

Nenhum artista grande nasceu estourando, uma carreira sólida se construía dia após dia e por trás do sucesso havia mais trabalho do que sorte, embora um empurrãozinho do acaso — para quem acredita nele — também não fosse ruim.

O tempo urgia e a juventude escapava do âmago tal qual a areia escorria pelos dedos das mãos, na tentativa inútil de impedir o óbvio.

Em pouco tempo, a banda do meu irmão tinha cinco integrantes e chegou a hora de escolher o nome. Um dos membros sugeriu as iniciais dos nomes dos garotos, mas a sugestão não foi bem acatada. Pior ainda, as divergências destacaram-se muito mais do que o afinco para dar início a uma carreira bem-sucedida.

Dois rapazes queriam que o grupo cantasse pagode, um se dizia neutro e o outro não respondeu porque nem sequer compareceu à reunião.

Meu irmão era veementemente contrário à ideia de ser pagodeiro, nem mesmo para ser mais "comercial".

Mantinha-se fiel aos ídolos que haviam inspirado nele o desejo de cantar para o mundo. Cantaria de alma para alma, o pop atemporal, que não enjoaria depois de dois ou três meses tocando direto nas estações de rádio Brasil afora.

Pensou que era tudo? Ainda não terminou!

Os pagodeiros não sabiam sequer segurar um pandeiro, que dirá arriscar um cover qualquer de pagode no cavaquinho. Teriam muito trabalho pela frente.

Para poderem ir atrás de um empresário e com sorte gravar uma demo, seria necessário mais do que vontade de desfrutar da fama, todavia, egos de artistas entram em conflito, era natural, meu irmão precisaria desenvolver muita inteligência emocional para contornar todos os contratempos e focar no objetivo maior: o reconhecimento.

Numa tarde de março, quando o verão se aproximava do fim, meu irmão me buscou na escola e durante o caminho de volta perguntei-lhe:

— E aí? Como é que vai a banda?

— Briguei com o Maurício.

Maurício, por sinal, foi o primeiro (e único) a telefonar após a apresentação do popstar no rádio:

— Sem volta?

— Sem volta — confirmou o rapaz.

— Mas, e a banda? Como é que tá?

— A banda acabou. — Respondeu ele, seco.

— Sério mesmo que acabou?

— Não estava mais dando.

— Que pena...

— Ninguém canta nada, ninguém toca nada, ninguém leva a sério, sobra tudo pra mim, eles faltam aos ensaios, não colaboram com nada, não sei o que queriam, sinceramente. O tempo todo eu fiz tudo sozinho, dei um ultimato: ou eles andavam na linha ou a banda acabava.

Pior ainda, nem nome a banda tinha. Falta de consideração.

— Puxa vida, que triste!

— Queriam entrar na banda só pra poder pegar mulher. — Lamentou o meu irmão enquanto esperávamos o sinal ficar verde para os pedestres.

— Sem nem tocar um pandeiro?

Meu irmão deu um suspiro triste.

— E o que você vai fazer? Vai continuar cantando?

— Claro que vou!

— Sozinho?

Exatamente como no início da história.

— Vou fazer carreira solo. — Declarou o primogênito, convicto de que trabalhando sozinho renderia muito mais.

Afinal de contas, não era mentira, ele havia composto as canções todas, buscado inspirações, até mesmo criando o visual excêntrico, para chegarem caras sem nenhum comprometimento e cantarem de galo, sem chance.

E a carreira solo do meu irmão também não durou muito, as responsabilidades sobrepujaram as juvenis ambições e essa fase da vida deixou um gostinho de saudade e ninguém chegou a conhecer as composições que poderiam ter feito história, mesmo que não fosse na voz dele porque se a interpretação de uma canção nos encanta é porque há uma letra muito poderosa por detrás.

O sonho foi-se embora no outono junto com as folhas secas que caíram das árvores à nossa volta.

FIM

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 09/11/2021
Reeditado em 07/06/2022
Código do texto: T7381567
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