CRIATIVIDADE E OPORTUNISMO

A especulação imobiliária construiu diversos prédios com muitos andares capazes de interferir na direção dos ventos e o calçamento de grande parte das ruas, transformou o Recife numa cidade com vários bolsões de altas temperaturas. Aquele frio que aparecia nos fins de abril e só ia embora nas primeiras semanas de setembro deu lugar a uma temperatura perto dos 30ºC durante todo o ano, além da sensação de abafamento como se estivéssemos numa sauna. Então aqueles mais abastados procuram contornar o incômodo instalando aparelhos de ar condicionado, mesmo nos prédios mais altos. Também tivemos um período de seca que se prolongou por vários anos e uma das consequências desse fenômeno foi o deslocamento de animais, notadamente pássaros, do interior para o litoral onde há maior facilidade para encontrar alimento.

Sabrina ligou para casa e pediu à dona Judite, empregada de muitos anos, para descongelar o pacote de bifes e colocar duas garrafas de vinho tinto na geladeira. O jantar em comemoração ao início das férias coletivas, devido às restrições da pandemia, não poderia ser no restaurante de sempre. Apenas duas colegas mais chegadas e o namorado de uma delas estariam à noite no apartamento.

Dona Judite retirou o filme plástico que envolvia a carne, colocou numa travessa de vidro e programou o forno micro-ondas para o descongelamento. Dois ou três minutos depois o forno explodiu. O desastre não teve consequências, porque o disjuntor desligou o fornecimento de energia. Dona Judite tirou a tomada do forno da rede e religou o disjuntor para que tudo voltasse ao normal.

Como a criatividade é filha da necessidade, dona Judite colocou a travessa de vidro em cima da caixa do condicionador de ar a fim de receber os raios do sol, ainda fortes, e o vento constante no 12º andar para descongelar o pedaço de carne duro como pedra.

Apesar do apartamento estar em ordem, dona Judite achou por bem dar uma geral, afinal naquela noite viriam visitas e, sabe como é visita, né? Repara tudo, principalmente nos mínimos detalhes. Quando chegassem ela já teria ido embora, mas a fama dela poderia ser arranhada por um “lixinho” qualquer esquecido num canto que só abelhudos veem.

O calor do sol e a brisa morna do entardecer fizeram o descongelamento mais rápido que o tempo gasto na geral de arrumação. A carne em temperatura ambiente exalou o cheiro delicioso captado pelo aguçado olfato do carcará, que silenciosamente pousou ao lado da travessa para se alimentar, apesar dos gritos dos vizinhos na tentativa de assustá-lo.

Alertada pelo alarido das pessoas, dona Judite, veio até a varanda, mas não pôde fazer nada, porque o carcará não desperdiçou a oportunidade de levar para seus filhotes, sempre famintos, a carne que se transformaria nos famosos bifes enrolados que Sabrina sabia preparar seguindo a tradicional, e sigilosa, receita de família.