MIGRAÇÕES

O mês de novembro chegava ao fim, e com ele o resultado dos exames. Último ano do curso ginasial. Minhas notas estavam de fazer vergonha. Fiquei para segunda época em três matérias:

Matemática, o eterno tormento de quem se acostumou a entender as coisas concretamente, sem suposições, nada de letras gregas para simbolizar não sei o quê;

Física, filha legítima da matemática e como a mãe, problemática e cheia de suposições. Para que diabos eu quero saber o peso da trombada que o trem A vai dar no trem B se estão no plano inclinado de 15º, sendo que um está parado e o outro a 120km/h. a única coisa que me interessa é não estar em nenhum desses trens;

Ciências Naturais. Eu jamais farei fotossíntese, por que tenho que saber o que acontece quando CO² + H²O + Energia solar se juntam dentro do estômato no parênquima clorofiliano?

Se tivesse ficado em mais uma, teria que repetir o ano. Naquele tempo era assim... fui proibido de sair de casa. Para um cabra passarinheiro como eu isso era castigo de morte.

Só podia sair de casa para dar de comer a João Bobo, meu cavalo pegador de boi. Sim, como bom sertanejo, ainda gosto de vaquejada, embora prefira mesmo a pega do boi, todo encourado, metido na Caatinga correndo como louco atrás do gado arredio, que nunca viu corda entre os chifres.

Meu pai, homem sábio, hoje eu admito com muito orgulho, não me deu uma palavra quando entreguei o boletim com as dependências. No jantar do dia seguinte ele decretou: passando ou não, o senhor, ano que vem, vai estudar no Recife. Vai morar na casa do estudante, estudar no Colégio Salesiano do Sagrado Coração e trate de se preparar para ser ENGENHEIRO, porque só tem sorte na vida quem está preparado para reconhecer as oportunidades.

Eu, entusiasmado com a novidade da mudança, com a liberdade sonhada de não ter satisfação a dar a ninguém dos meus movimentos, danei a venta nos livros e passei com bastante folga nas três matérias. Lembro-me bem que tirei 9 em matemática...

E aconteceu tal como ele determinara. O ano correu lentamente. Os colegas da casa do estudante faziam bancas de estudo diariamente e minhas notas estavam agora de fazer bem a qualquer um que olhasse para elas. Pouco dinheiro, vida regrada sem ter para onde ir, sem conhecer ninguém da capital, deixei minha roupa “de sair” dentro do guarda-roupas que servia para todos.

Acontece que móvel velho em local em que pouco se mexe é criatório de traças que, para meu tormento, se alimentam de tecido de algodão e o meu paletó, do terno cinza chumbo, depois de um ano, estava parecendo peneira de ventilar café. Na semana seguinte ia acontecer, no Clube Português do Recife, a festa de encerramento do ano letivo para todos os residentes nas Casas dos Estudantes. Escrevi para minha mãe pedindo para ela comprar um paletó na loja Beirute de seu Michel Calebe, onde eu havia comprado o terno. Quando o paletó chegou, a cor era um cinza lavado, não tinha nem um tiquinho de chumbo.

Naquela época não havia esse negócio de blazer, de cor diferente entre a calça e o paletó, a não ser que fosse farda da Marinha do Brasil ou do Corpo de Fuzileiros Navais.

O que vale na vida, realmente, é a solidariedade entre as pessoas e foi assim que Josias Machado, meu companheiro de quarto, sugeriu que eu mandasse tingir o terno de preto na Lavanderia Papaléo, lá no Pátio de Santa Cruz. O serviço ficou uma beleza, preto brilhante, cheirando a novo.

As pessoas formam grupos levados pelos interesses comuns e para, de alguma forma identificar os participantes, criam determinados signos. No caso dos estudantes de medicina, todos eles iam vestidos de preto. Eu ainda era aluno do primeiro ano do Científico, mas vestido de preto, fui “aceito” no grupo dos Acadêmicos de Medicina, como eles gostavam de ser indicados. Entre as estudantes, tinha uma mocinha, realmente linda, com um vestido rosa bebê que chamou minha atenção e pelo desenrolar dos acontecimentos ela demonstrou algum interesse no cavalheiro bem-apessoado que eu era, naquela época, claro.

Apesar do calor escaldante do verão, dançamos de rosto colado a maior parte da noite sem parar, iluminados pela luz negra, estroboscópica. Em determinado momento, notei que o pigmento preto da manga do meu paletó estava impresso nas costas dela como uma faixa e também no busto. Eu tinha estragado o vestido da mocinha de quem nem o nome eu sabia.

A única alternativa que me ocorreu foi sair dali o mais rápido possível, porque eu não tinha dinheiro para reparar o dano causado pela migração do pigmento que também deixou marca indelével nas camisa e cueca brancas com que eu estava vestido.