O COTIDIANO NO SERINGAL - A MORTE DO SEU ERMENEZILDO

O COTIDIANO NO SERINGAL

A morte do seu Ermenezildo

Autor Moyses Laredo

Ainda no seringal Porongaba rio Iaco, colocação do Riozinho, a nossa casa era simples, coberta com jarina (Phytelephas macrocarpa) uma palmeira abundante e piso de paxiúba (Socratea exorrhiza) é usada pela população ribeirinha para a confecção de tabuados. Poucos moradores residiam em construções de madeira serrada cobertas com telhas de alumínio, consideradas como uma boa casa.

Certo dia, chegado de outra colocação vizinha, veio um senhor de nome seu Ermenezildo, com a intenção de caçar mais meu irmão, como vez por outra faziam, já era bem à tardinha e meu irmão ainda não tinha “chego”, havia passado o dia ajudando meu pai fazendo uma ubá, (canoa feita de um só tronco de árvore), comum entre nativos e índios da região. Os Jurunas eram especialistas na fabricação deste tipo de canoa. A maneira de fazer uma ubá, varia coisa pouca de uma região para outra, são fabricadas segundo técnica tradicional entre índios e caboclos da Amazônia. Escolhe-se um tronco bem linheiro (retilíneo), de madeira resistente à água, como itaúba. Depois de esgalhado (galhos cortados), e aparelhado o tronco, é escavado a machado, enxó e fogo. Esculpe-se a forma externa de proa e popa a enxó e machado. Para controle da espessura do casco, são abertos furos, mais tarde fechados com tornos (cavilhas) da própria madeira. O casco então, é emborcado sobre um jirau baixo, sob o qual se acende um fogo espalhado e de pouca chama para emanar calor e facilitar a curvatura da madeira. Com o uso de tesouras de pau, após a madeira aquecida e “amolecida”, forçam-se os lados para fora a fim de abrir a canoa. É uma operação lenta e demorada, requer muito cuidado para que o casco não rache. Não se usam cavernas de reforço, e a introdução de bancos fixos parece ser inovação recente. Todas estas operações obedecem, a técnica propriamente dita, e a experiência do mestre canoeiro.

Minha mãe recebeu o seu Ermenezildo, velho conhecido da família e pediu que o mesmo esperasse por meu pai e meu irmão, então, já quase noite foi quando chegaram, cumprimentaram seu Ermenezildo o qual lhes disse o que desejava, de pronto meu irmão concordou e disse-lhe que bem cedinho, antes do sol sair, iam buscar umas pacas. Os dois, pai e filho, tomaram um bom banho de cuia com água aparada da chuva, em seguida, minha mãe serviu a janta, da sobra de um peba gordo (tatupeba" e "peba" são originários do tupi tatu'pewa, que em português significa "tronco gordo e achatado") que se aventurou por perto. Como é comum, seu Ermenezildo também sentou-se à mesa sem cerimônia, depois, foram para o terreiro acender um porronca, disque, pra “afugentar as carapanãs”, e de conversa vai, e conversa vem, bateu o sono, seu Ermenezildo saiu para se esticar numa rede, que minha mãe tinha atado pra ele, foi quando se ouviu o canto da rasga-mortalha passando rente ao barraco, bem pertinho da janela do onde dormia o seu Ermenezildo. A rasga-mortalha conhecida também como Suindara, (tyto furcata) é uma coruja que possui fama de agourenta, acredita-se que quando essa ave passa por cima de alguma casa soltando um ruído semelhante a um “pano sendo rasgado”, daí o nome originado, é sinal de que algum morador por ali por perto está prestes a morrer. Desse momento em diante, seu Ermenezildo começou a se sentir mal, apareceu uma febre súbita e bem forte que se tremia todo, minha mãe ouviu ele gemer e ofereceu-lhe um pouco de chá de alho, com mangarataia (gengibre) e casca de angico (Angico é a designação comum a várias árvores dos gêneros Piptadenia, Parapiptadenia e Anadenanthera da sub-família Mimosoideae), acreditava ela ser malária o mal dele, muito comum na região, um santo remédio, ele bebeu e dormiu, mas, pela manhã, quando todos acordaram, notaram que o seu Ermenezildo ainda estava quieto na sua rede, tinha morrido, estava durinho, como disseram, “coitado, quando se acordou estava morto”, então, foi mandado chamar sua mulher e filhos para despedida final, e ali bem pertinho no mesmo dia foi enterrado, antes de começar a feder, nada de velório, morreu, morreu. Havia um antigo cemitério indígena perto onde nós morávamos e lá foi enterrado seu Ermenezildo.

Passou-se uns dias, minha avó que morava sozinha noutra colocação bem pra riba, veio nos visitar, a velha ainda era dura na queda, não largava sua brejeira (tabaco de mascar) era ela que cuidava de tudo por lá, muito rabugenta mas mesmo assim, ainda mandava em todos, ela sabia que a minha mãe vivia tendo uns ataques, pois tinha pegado “epilepsia”. “Nesta noite” ouviu o urutau (Nyctibius griseus) cantar o seu canto triste e melancólico, ficou pensativa, será que alguém lá de casa está mal? No interior sempre é um mal presságio. O caminho de casa passa pelo cemitério em que seu Ermenezildo fora sepultado, minha vó quando viu a sepultura nova, começou a gritar, desesperada dizendo “– Porque fizeram isso comigo? ... Minha filha morreu e ninguém não me avisou!” E gritava se rolando no chão, puxava os cabelos em tranças, no estilo das índias cholas bolivianas; a gente ouviu de longe a presepada, correu nela, mas não deu tempo, tinha arrodeado e foi logo se jogando no chão de assoalho de paxiuba da cozinha, quase morrendo de tanto gritar, nós gritávamos juntos feitos uns loucos, – “Vovó, vovó, vovó escute! Não foi a mamãe que morreu não, foi o caçador, seu Ermenezildo, a mamãe tá bem ali no igarapé vivinha, pescando” apontando pro beiradão, minha vó, numa parada para puxar fôlego, conseguiu ouvir a neta esbravejar, sentou-se no chão, mais desconfiada do que cachorro de índio, esboçou um sorrindo envergonhado, só de um lado de canto da boca, toda sem jeito, quis saber do que tinha se passado, contamos a história toda pra ela, que só disse – “Ainda bem, graças à Santa Raimunda do Bom Sucesso que foi o seu Ermenezildo”, a família do seu Ermenezildo tinha acabado de vir do cemitério e chegou a ouvir o que a velha dissera, todos se indignaram, iniciou-se um bate-boca ferrenho mais alto ainda. – “A senhora é que já devia estar morta, véia feiticeira” e não parou por aí, foi xingamentos pra lá e pra cá, noite a dentro, nenhuma das duas queria perder, foi desfiado todos os segredos da vovó que viveu um tempo num “Patrimônio” (pequenos povoados longe dos centros regionais, espécies de vilas, lugarejos, que davam “apoio” aos viajantes, tropeiros ou romeiros). Em resumo, ninguém dormiu esta noite.

Molar
Enviado por Molar em 03/05/2022
Reeditado em 03/05/2022
Código do texto: T7508408
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