Histórias do Sul - A Lei do patrão Jaime

Aconteceu há muito, muito tempo...

E foi num povoado do tamanho de um ovo de galinha, mal desenhado no mapa da fronteira do Pampa gaúcho, bem pertito de Aceguá.

A figura da Lei por lá era o patrão Jaime, uma espécie de delegado, mais conhecido por Janjão, dado ao tamanho tanto na altura quanto na gordura. Quera de família, ele conhecia o dever e ninguém duvidava da sua sabedoria.

Um dia ou quase noitinha ele foi chamado no bolicho do Valmir.

Lá chegando, a cena era bem clara. O filho mais velho do Valmir havia apunhalado o próprio pai e ainda estava lá, como se tivesse sofrido um manotaço, ao lado do cadáver empunhando a faca pingando sangue.

O Janjão pensou, coçou a barba, escarrou no escarrador, depois se achegou para o gurizote, pegou a faca da mão dele, limpou o sangue na própria bota de couro e falou bem despacito: bueno, este guri não fez nada, o Valmir se atrapalhou das pernas cambaleou e caiu sobre a faca.

E completou: este traste bebia pra criar coragem para bater na coitada da comadre Alice e abusar das próprias filhas, como de costume, todo santo dia na hora sagrada da Ave Maria. Agora filho, levanta a tua cabeça, que o serviço foi merecido e tu como mais velho, segue a vida por aqui.

Depois, o Janjão olhou para os três pinguços ali presentes e decretou: não quero ouvir nem um pio sobre o ocorrido.

Os Xirus saíram pela porta e sumiram no breu da noite, mais rápido do que o minuano.

O Janjão ainda pegou um pano de louça e secou as lágrimas da comadre Alice, depois parou na porta e ordenou: vão tudo dormir, que hoje a noite vai ser boa e amanhã é um novo dia. Muy buenas noches.

E, assim, por décadas e décadas, o caso ficou na penumbra do esquecimento.

E como então ainda hoje se sabe do ocorrido?

Entonces, después que toda aquela gente se foi para as estâncias de São Pedro a mando do Patrão Velho lá de cima, a história deve ter escapulido em alguma charla de galpão na roda de chimarrão e se espalhou pelos quatro cantos do mundo.

Vocabulário

pertito= pertinho

quera= homem destemido, forte e valente

bolicho=pequeno comércio, que vende de tudo, inclusive bebida

manotaço=pancada que o cavalo dá com uma das patas dianteiras, ou com ambas.

gurizote= guri crescido, mocinho

despacito=devagar

xiru=índio, caboclo, moreno carregado, que tem traços de indígena

minuano=vento frio que sopra do Sudoeste, no inverno gaúcho

Patrão Velho=Deus

charla=conversa

Ondina Martins
Enviado por Ondina Martins em 04/05/2022
Reeditado em 05/05/2022
Código do texto: T7509300
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