O BILHETINHO

Exrtraído do livro do autor: “Tute – Brincadeiras de papel”

“Em poucas palavras manuscritas, num singelo bilhetinho de amor, podem conter sentimentos e emoções que não caberiam num livro de infinitas páginas impressas”. (Tute)

Emoções e experiências vividas quando crianças nos marcam de forma indelével e estão relacionadas com descobertas que se dão em profusão, sobretudo nos primeiros anos de escola – no meu caso, o antigo grupo escolar. Nesse período, aprendemos diariamente a nos relacionar com pessoas de fora do núcleo familiar e saímos de uma zona de conforto, emergindo em uma nova realidade. São riquíssimas trocas de valores e conhecimentos, discernimentos do espaço territorial e a descoberta de sentimentos desconhecidos.

Aprendemos a obedecer ao professor na sala de aula, descobrimos a necessidade de socializar e compartilhar o espaço do qual desfrutamos, e passamos a cumprir regras de um ambiente diferente do lar, da família, da casa onde moramos. É nessa fase da vida que somos despertados para a sensação de querer bem aos outros. E, em alguns casos, especificamente a uma determinada pessoa, mas de maneira diferenciada. É um sentimento que extrapola ao da amizade e vai muito além das percepções comuns de apreço e consideração.

É alguma coisa que aflora em nosso âmago, invade o íntimo e faz desabrochar algo encantador em uma determinada pessoa. Um simples sorriso dessa criatura parece irradiar luz, nos põe atônito, faz com que nosso coração bata mais forte e nos deixa atordoado como se tratasse da primeira embriaguez. É como que se a presença dessa pessoa preenchesse de leveza e ternura cada espaço do ambiente e tomasse conta de nossa alma.

A maior parte das pessoas passa por experiência semelhante na pré-adolescência – pelo menos é o que eu acredito – quando descobre, sem conseguir entender e tampouco explicar, tratar-se de um momento mágico, que nos deixa em estado de quase êxtase. Comigo ocorreu pela primeira vez, talvez de forma precoce, há mais de cinquenta anos, quando cursava o quarto ano do antigo curso primário. Ainda hoje, a situação permanece vívida em minha memória.

Não sabia a razão, mas aquela linda menina despertava em mim algo além da amizade e companheirismo. Lembro que, quando a notei, na sala de aula, as palavras da mestra se dispersavam e as lições não mais penetravam na minha mente. Estava absorto a contemplar os movimentos da beldade da carteira ao lado. No entanto, o menino tímido não dominava as artimanhas de uma conquista, mas notara que alguns coleguinhas trocavam bilhetes. Pelos comentários, sabia que eram mensagens de carinho e de afeto, inocentes bilhetinhos de amor.

Estava ali, portanto, ao meu alcance, o modo mais fácil e seguro de me declarar à bela e meiga menina – aos meus olhos, a mais encantadora de toda a escola. Tomado por um impulso, decidi, sem medo, me declarar à princesa dos meus sonhos. Do caderno espiral, com todo cuidado arranquei uma folha sem “orelha” e fiquei na dúvida sobre usar a esferográfica vermelha ou a preta para escrever. Já com certa ousadia decidi que a vermelha era mais adequada. É uma cor quente que traz com ela significados instigantes – paixão, excitação, energia, imaginei.

Com o coração acelerado escolhi algumas palavras do meu ainda escasso vocabulário e que, na minha avaliação, dariam sentido à abordagem. Na folha impecável, tracei letras bem delineadas com alguns termos singelos enaltecendo a diva – “Menina do olhar meigo e de sorriso encantador, queria tanto te namorar”.

Terminada a declaração, dobrei a pequena mensagem com cuidado. Tal qual um bilhete de loteria, a sorte fora lançada. Na saída para o recreio, trêmulo depositei a mensagem sob o estojo de canetas dela. Ansioso, aguardava o desenrolar dos acontecimentos. De volta do intervalo, aflito observava o comportamento dela, na expectativa de receber um sim. A menina dos meus sonhos apanhou o bilhetinho, fixou o olhar e leu. Virou-se na minha direção, sorriu suavemente, mas não disse nada. Mudo, com o coração a mil senti a face ruborizar.

Os dias se passaram e a menina do sorriso doce não se manifestou e eu também não insisti em obter uma resposta. Se não dissera sim, podia significar que não. Frustrado na incerteza, fiquei apenas imaginando como seria namorar com a mais encantadora menina do grupo escolar. Semanas e meses se foram e, ao término do ano letivo, findou-se também o entusiasmo pela garota da qual nunca mais tive notícia. Ficaram somente as lembranças das juras secretas ensaiadas e não declaradas, do desejo de um beijo que não se concretizou e da história sem desfecho.

Agora adulto, faço uma analogia entre um bilhetinho enamorado e um bilhete de loteria: para ambos, a sorte sempre estará lançada. Nem sempre seremos premiados.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 16/05/2022
Reeditado em 17/05/2022
Código do texto: T7517712
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