Quando até sua sombra lhe abandonar, belisque-se

Já fazia um bom tempo que voltava para casa desolada. Naquela madrugada, quando as luzes da cidade estavam apagando-se para dar lugar ao novo dia, percebeu que não estava vendo sua sombra refletida na úmida calçada. Foi então que lembrou do que sua mãe dizia: - Quando até sua sombra lhe abandonar, é hora de dizer adeus... Não. Não é bem assim. Não lembrava.

Hora da prostituta se aposentar! E acaso se aposentam? Em alguns sentidos, sim! A concorrência era grande e diversificada. Novas, bonitas, corpos moldados em academias, silicone onde nem se imagina, celulares caríssimos, roupas de grife, perfumes, fazem faculdade e falam três idiomas. Discutem futebol, política, direitos, cotação do Dólar, da Libra, do Peso argentino - péssimos clientes -, e conhecem cocaína.

Recusou por dezenas de vezes o convite da filha para largar aquilo e ajudá-la a cuidar dos dois netos. Pagava-a para isso. Mas queria liberdade. Liberdade que a escravizava. Ah, mas lá é muito frio! Como se o falso calor das noites de labuta não a incomodasse. Ah, se eu morrer lá, quem irá no meu velório? E aqui? Não mais que três ou quatro companheiras que, como ela, teimavam em manter-se vivas. Lá, pelo menos um caixão de luxo para carregar seus pecados ela teria. E aqui?

Lembrou de como sua mãe dizia: “Quando até sua sombra lhe abandonar, belisque-se para ver se está viva”.

- É hora de parar. E tempo lhe impôs uma derrota. Sentirás saudade? De algumas coisas, sim... Pelo menos terá paixão em beijar seus netos. Não lembrava da filha ter falado se a cidade do Porto é portuária... Pelo nome, parece que sim!

Se beliscou e sentiu que ainda estava viva. E viva Portugal! Quem sabe lá sua sombra ganhasse vida. Nova vida!