O destino de Seu Lula

Vindo de uma família tradicional do interior pernambucano, Seu Lula conheceu desde cedo o seu futuro quando seu velho avô, em mais uma de suas cavalgadas pela vasta propriedade disse-lhe que "até onde seus pequenos olhos enxergavam, era tudo dele" e isto incluía terras, plantações, gado e tudo mais, até mesmo as pessoas que ali viviam e para ele trabalhavam. Cresceu com isso na cabeça... Sem muitos limites ou vontades não satisfeitas.

Seu Lula, naquela época ainda Lulinha, cresceu nesse meio. Era moleque esperto e nunca se deteve às antigas regras de nobreza da família. Desde essa época já trazia ares de arrogância e autoritarismo mesmo em ingênuas brincadeiras com os filhos dos empregados. Cedo aprendeu a dar ordens e a negociar. Com a morte dos avôs e uma grande quantidade de dívidas em bancos, não entendia a burrice do pai com os negócios. Sabido que era, percebia a decadência do seu mundo. Foi obrigado a ir para a capital antes dos quinze, mesmo a contragosto. Nunca se deu com os estudos. Voltou antes de conseguir entrar para a faculdade de mãos dadas com a filha do desembargador que havia embuchado e trazia fugida para morar com ele na fazenda. Queria era trabalhar... Levantar novamente a fazenda e recuperar o que julgava ter sido perdido pelos pais.

Seus pais, descendentes diretos de antigos coronéis, ainda viveram na infância os resquícios de uma época áurea quando a cana-de-açúcar era o ouro do nordeste. Nunca passaram por necessidades, ao contrário disto, desde cedo tiveram do bom e do melhor. Foram criados como príncipes sem nem se quer pisar no chão de terra batida na frente da já velha casa grande. Estudaram na capital, se formaram advogado e psicóloga antes de terem seu casamento arranjado pelos pais, os avôs do Seu Lula. Voltaram e decidiram unificar as fazendas com planos de expansão e até de globalização, palavra nova à época.

Quando da sua volta seus pais já haviam perdido mais da metade das terras para os bancos e o velho engenho estava de fogo morto já há seis anos depois de definhar por muito tempo. Nunca vira o engenho a toda, mas ainda recordava a noite que se fazia dia no ritmo do estalar da cana queimando, a fuligem passada no rosto para assustar os meninos menores e o alarme do engenho no outro dia bem cedo indicando o início da época da moagem. Tratou logo de se inteirar da situação. Assumiu o controle da velha fazenda e mudou de rumo. O gado leiteiro já aparecia como melhor opção entre a mata e o agreste. O já cansado pai nunca entendeu mesmo de negócios e apoiou o filho, preferia passar os dias entre os livros e viagens à Europa gastando todos os recursos da família. Sempre achou que tinha nascido no lugar errado.

Lula ergueu novamente a fazenda com pulso forte. Tinha o sonho de ver o engenho voltar a moer. Reformou a velha casa. Teve filhos, carros novos e até importados. Muito gado. Comprou o pedaço da fazenda que os pais haviam perdido. Mandou os pais morarem no velho continente conforme desejavam. A esposa cuidava da casa e dos filhos. Nunca a viu com qualquer forma de carinho. Construiu o seu mundo e reinava nele. Aliás, como ele mesmo dizia, era o “coronel do seu mundo” e teve tudo o que desejou ter.

O tempo foi passando e o gado minguando. Os filhos se casaram e foram morar na cidade. Nunca tiveram jeito no trato com o gado nem com os negócios. As sucessivas secas acabavam com tudo. Cada uma delas fazia o velho Lula vender metade do gado para poder alimentar a outra metade. Também contraiu dívidas com os bancos. Morando sozinho na velha casa, depois da morte da esposa, tudo refletia o seu sofrimento. Os antigos criados o ajudavam no que podiam por pura pena diante do esquecimento da família.

A última vez que eu o vi, antigo herói da minha infância, ele ia montado em seu cavalo branco, terno azul marinho, ralos cabelos brancos bem penteados sob o velho chapéu de massa, botas engraxadas sustentavam as brilhantes esporas, chicote à mão esquerda, pose de rei. Soube depois que estava indo ao banco depois de ter sido chamado com urgência. Voltou ao cair da noite, trancou a casa grande como se não quisesse que ninguém mais pisasse ali. Via talvez o fim de sua linhagem. Tinha às mãos apenas a velha espingarda nunca usada e uma antiga foto da família. Dirigiu-se para a cocheira. Tinha a companhia de poucas e magras reses, únicas testemunhas. Foi encontrado no dia seguinte deitado nesta mesma cocheira abraçado ao porta-retrato com um tiro no peito. As reses lambiam o sangue que saia direto do ferimento como que para apaziguar a sua sede e o sofrimento de seu dono... Havia descoberto que perdera o restante de suas propriedades e economias em dívidas com o banco.