A Crisma

Nada de novo na cidade; vez por outra, uma festa religiosa além das convencionais São João e Natal. “As missões”, não tinham periodicidade regular e, quando aconteciam, o ponto alto da festividade era o sacramento da Crisma (1) feita junto com uma série de missas celebradas com a ajuda de padres convidados de outras paróquias e, obrigatoriamente, na presença do bispo. As crianças eram quase sempre crismadas à revelia para homenagear um amigo ou amiga da família. Note-se que o rito é direcionado para crianças, adolescentes e adultos capazes de discernir sobre suas escolhas.

A cumplicidade entre crismandos e padrinhos era quase sempre inexistente, mas os Pais ficavam felizes e/ou aliviados pela oportunidade de agraciar o amigo (a) ou parente. Para a criança valia o clima de festa, a roupa branca recém comprada, o sapato preto ou branco, novinho em folha e, muitas vezes, o agrado em forma de presente ou brinquedo – terço? Não, lá vem um terço, juro que devolvo –pensava o futuro afilhado ao avistar o pacotinho banco amarrado com uma fita vermelha e, às vezes, com uma medalhinha de Nossa Senhora.

Destituído de qualquer entusiasmo pela manifestação religiosa, o nosso crismando tenta se preparar para a festa e sonha em ser agraciado pela fé que, convencido pelos pais, viria como sem falta. Na cidade o clima é festivo e contamina toda a comunidade. A feira livre é adiada para que a população rural compareça em massa à igreja. Os donos de lojas veem seus estoques de tecido branco acabarem; tecido de cor só nas largas fitas vermelhas usadas para segurar as medalhas de todos os Santos e de Jesus, Maria e José na manjedoura, uma das mais procuradas. Os feirantes montam suas barracas ao redor da igreja expondo lembranças e velas de todos os formatos e tamanhos.

No dia da Crisma, padrinho e afilhado se dirigem logo cedo para a fila onde dezenas de pessoas aguardam sob o sol inclemente o cortejo com o Bispo e Padres enfileirados em procissão. O grupo é seguido de perto por sacristãos segurando caldeirinhas e hissopes em prata de lei ricamente decoradas em relevo. Para os que desconhecem as peças utilizadas nas celebrações católicas, caldeirinha é o vaso litúrgico onde se coloca água benta, enquanto que hissope é o objeto metálico utilizado para aspergir a água benta naqueles que serão abençoados.

Lentamente, o Bispo se aproxima de cada padrinho e respectivo afilhado e, sobre a testa deste, unta o sinal da cruz com o santo óleo. Em seguida asperge gotículas de água benta sobre ambos finalizando o rito. Nesse momento uma atmosfera emotiva atinge a todos e alguns mais emotivos não conseguem conter as lágrimas que se confundem com o suor que escorre pelo rosto. Nosso crismando permanece impassível, ansiando pelo mistério da fé que ainda não vem. Durante todo cortejo algumas crianças riem de nervoso e outras ficam quietas além da conta com medo da punição divina ou de perder a chance de ter o encontro com a fé.

A espera pelo fim do corteja é um tormento. A roupa branca agora encharcada com o suor armazenado e o cansaço pelo tempo de espera embaça a alegria contagiante que reinava durante a expectativa da cerimônia. Com o suor escorrendo pela testa e diluindo o santo óleo que agora risca a camisa branca, esmeradamente alvejada para o evento, nosso recém crismado não se sente arrebatado pela fé e anseia pelos comes e bebes da comemoração.

(1) - “Segundo a doutrina da Igreja Católica, a Crisma – ou a Confirmação – é um sacramento em que o fiel recebe, através da ação do bispo, uma unção com o Crisma (óleo). Trata-se de um rito em que o ministro impõe as mãos sobre os crismandos, invocando o Espírito Santo, e os unge com óleo. O sacramento do Crisma consiste na Confirmação do Batismo pelo Espírito Santo, por meio da qual o fiel é enviado ao mundo para testemunhar o Evangelho de Jesus Cristo em atos e palavras“.

“Na Igreja Católica, administra-se esse sacramento quando se atinge a idade da razão, e normalmente se reserva sua celebração ao Bispo, significando, assim, que esse sacramento corrobora o vínculo eclesial”.

FCintra
Enviado por FCintra em 18/11/2022
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