Luísa

A chuva cai, lá fora...

Não sei quantas vezes o punho dele acertou o meu rosto...

Esqueci-me...

Não, não me esqueci. Parei de contar... Apenas isso...

Cansei-me de contar as vezes que gritava, implorando para que parasse.

Cansei-me de contar as vezes que pedia que me deixasse sair debaixo do joelho dele que, sem piedade, esforçava as minhas costelas contra os meus pulmões, impedindo-me de respirar...

Cansei-me de contar as vezes que implorava que não me batesse mais... Cansei-me de suplicar que me deixasse ir embora...

Cansei-me...

O punho cerrado não mais forçava a sua entrada na minha boca... Eu abria-a o máximo possível, para sofrer o menos possível...

Os meus olhos já nada viam...

As lágrimas já não caíam...

O sangue, esse, escorria livremente, solto, em direcção à liberdade, procurando escapar do sofrimento a que o meu corpo, a minha carne, os meus ossos eram sujeitos.

Já nada sentia. Nada.

Tudo era indolor, incolor, insosso...

A minha mente ainda divagava... e... por momentos, regressava ao passado, ao simples, ao doce abraço que me davas quando me vias conversando com alguém, quando declaravas o teu amor por mim e dizias a todos que eu era tua... Só tua...

Agora entendo.

Posse. Possessividade. Possessão. Obsessão.

Não era amor...

Hoje, escondo a vergonha por debaixo do batom, da base, do rímel à prova de água, para que não fique borrada quando as lágrimas escorrem... As lágrimas de ontem.

Hoje não sinto mais nada... Nada.

Hoje, choras tu. Lamentas as vezes que me amaste tão intensamente. Lamentas os abraços que me deste, tão apertados, mal conseguia respirar. Querias proteger-me, certo?

Hoje choras tu... Choras e ameaças partir comigo, com o meu corpo mutilado, escondido por baixo da saia de tule e da camisa de seda com que me vestiste, o meu modelito preferido, disseste. Até os sapatos de dança, os que eu nunca usei, pois jamais o permitiste, até com esses enfeitaste os meus pés. De nada servem, agora... Os meus pés já não dançam, nem mesmo descalços...

Hoje choras tu, largando o punhado de terra húmida sobre o meu caixão... Choras e chamas por mim...

"LUÍSAAAAAAAAAAAAAA!!..."

Choras tu e choram os céus.

A chuva cai, lá fora...

***

Annali Tavares, in "Colectânea Mulher" ©

01.6.2020

Ps: Violência doméstica não é um acto de Amor. A cura só poderá ser possível se a vítima denunciar e o agressor for responsabilizado... antes que seja tarde demais.

Nota da autora: Aproveite para reflectir. ***Violência Doméstica é crime***

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