Rasgadinha

     

      O rapaz e o chefe político, eterno candidato a prefeito, amigo de juventude de seu pai, vão à capital. O rapaz, meio a contragosto, bota até um terninho, acerta a barba e corta o cabelo, atendendo ao pedido. O candidato diz que só quer companhia, não se sente à vontade no Palácio, no meio de tanta gente.

     - Fica mais bonitinho. Vamos falar com o governador. Não é pouca coisa, concorda?

      Na capital, audiência com o chefão no Palácio. Conversa vai, conversa vem, vários pedidos anotados: cadeira de rodas pra D. Clotilde, bolsa de estudo pro filho do pastor Riquelme, pagamento da conta de luz da filha do Quelemente, vaga sem vestibular no Colégio Estadual pro filho do escrivão, pintura da capelinha do Campo Grande e reforma do postinho do Saco ...       

     Para cada lugar, um quinhão. Não se ganha eleição em um só dia, tem que imitar a saúva: de folhinha em folhinha, abastecendo o formigueiro sem descanso.

     Com o candidato demora mais, é do seu curral eleitoral,  Depois de quase uma hora, faz menção de despedi-los, há muitos ainda no salão de espera, aí é que nota o moço de terno:

     - Uai, e esse moço de terno aí? Entrou calado e vai sair mudo? O que ele precisa?

     O moço de terno, orgulhoso, metido a sabichão, fica meio confuso, olha pros lados, gagueja e vai dizer que nada, não precisa nada, veio só de companhia...

     O eterno candidato faz sinal, entra rápido na conversa:

     - Ele quer publicidade pro jornalzinho dele.

     O governador, brincalhão:

     - E aí, chefe, ele é do contra ou é dos nossos?

     O candidato sabe a resposta de cor:

     - Dos nossos, claro. Desculpa, governador. Era tanta coisa, esqueci dele... O moço veio porque eu insisti.

     - Vamos resolver o caso dele.

     Rabisca no primeiro papel que encontra: "dar propaganda pro jornalinho" ... Como é que é mesmo o nome, moço?

     O candidato atropela:

     - Correio da Serra.

     Pedido atendido, o candidato se levanta, agradece. O moço, pego de surpresa, também diz obrigado e saem. O rapaz teve que engolir, em poucos minutos, "jornalzinho" e "jornalinho", odiava aqueles termos. No corredor, contramão, esbarram em outros pedintes. A fila anda, mas não acaba.

     Uns quinze dias depois, o moço se lembra da conversa, bota na pasta de trabalho o pedido com o jamegão do governador. Já que vai à capital, por que não tentar a sorte? E olha a coincidência: no pedido consta o nome do responsável pela publicidade do Estado. O sobrenome, meio raro, é  o mesmo do grande amigo da cidade de Diamantina, ex-colega de faculdade. Será que são parentes? Faz uma ligação:

     - É meu primo-irmão, responde o amigo.

     - Ué, então vou lá. Mais de curiosidade. De repente...

     O primo, em seu escritório a poucos passos do Palácio, lê o pedido, levanta os olhos, sorri e diz para o moço:

     - O pedido é assim mesmo, a letra não é boa, mas olha aqui: tem uma rasgadinha no canto superior direito. Sabe o que é? Código do governador. Quer dizer: é pra NÃO atender. 

 

William Santiago

 

 

 

William Santiago
Enviado por William Santiago em 05/04/2023
Reeditado em 14/04/2024
Código do texto: T7756782
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