A EQM DO SEU FRANCISCO

   

Seu Francisco, caboclo traquejado nas andanças do sertão, cabra de muita sabedoria, olhou com alegria para os amigos já acomodados na varanda da sua modesta casinha de taipa. Era um domingo ensolarado, bonito, e todos vieram de longe a fim de ouvir mais uma de suas histórias.

—Tonha, vosmecê se alembra da vez que eu morri e, tal qualmente Jesus Cristo, ressuscitei dos mortos?

— Como não haveria de lembrar? – disse Dona Antônia, observando o marido com paixão, para depois lançar um olhar de orgulho aos outros. – O Chico, quando mais moço, bateu a caçoleta bem na minha frente. Num momento, ele tava ali muito faceiro da vida, cuidando do roçado e, de repente, o pobre deu um grito de dor. Ahã, levou a mão ao peito e caiu durinho no chão, feito um pedaço de pau. Ficou mortinho da silva.

Todos olharam impressionados para o velho contador de causos.

— É a mais sacrossanta verdade! Não é do meu feitio me prosear, mas fui bem mais rápido que Nosso Senhor. Sim, porque Jesus Cristo ressuscitou dos mortos no terceiro dia e eu, podem acreditar, não levei nem meia hora.

As visitas expressaram um “ooohhh” de espanto em uníssono, à exceção do seu Idalino. O caboclo sempre tinha por hábito duvidar dos relatos verídicos do velho contador de causos. Seu Francisco suspeitava que aquele comportamento afrontoso do vizinho cego era pura inveja.

— Seu Francisco, me perdoe o mal jeito, mas vosmecê tem certeza que morreu mesmo? Não foi um desmaio?

— Desmaio? – retrucou aborrecido o dono da casa. – Seu Idalino, não sou homem de padecer desse tipo de faniquito, não, visse? A verdade é que eu abotoei o paletó bem ali no começo da roça de cana e, sem mais nem menos, fui dar com as fuças lá nas portas do céu. Fique vosmecê sabendo que falei com gente muito importante naquele lugar, viu?

Novamente se ouviu um “ooohhh” de admiração.

— Arre égua, meu padrinho, vosmecê morreu e... e depois desmorreu?

— Isso mesmo, Dandara. Sofri uma EQM.

— Compadre da minh’alma, que diabo é isso de EQM?

— Experiência de Quase Morte, seu Argemiro. Hoje não se sabe muita coisa, mas no futuro isso aí vai ser muito estudado. Vai ter gente até escrevinhando sobre o assunto em grupos de pessoas muito inteligentes na tal da arte da literatura.

— E como foi essa tal experiência? – quis saber o cego Idalino, já fazendo cara de desconfiado.

— Olha, minha gente, eu pouco me alembro da dor. De uma hora pra outra, senti uma leveza na minha pessoa. Pois é, fiquei tão leve, tão leve, que comecei a flutuar quem nem bolha de sabão levado pela ventania. Quando dei por mim, eu já tava indo lá pra riba, na direção do céu. Olhei pra baixo e vi o meu corpo esparramado no chão. A Tonha, pobrezinha, corria desembestada pela roça num berreiro sem tamanho à procura de ajuda.

— Misericórdia! – disse Dandara, levando as mãos à boca aberta de assombro.

— Então – continuou seu Francisco -, subindo daquele jeito, assim meio desgovernado de pai e mãe, alcancei rapidinho as primeiras nuvens. Foi bem aí que uma explosão de luz me envolveu todinho. Fiquei inté cego por alguns minutos. Quando a visão voltou, rapaz da minh’alma, eu tava de frente às muralhas gigantescas do paraíso. E adivinhem só quem tava cuidando do imenso portão do céu?

— São Pedro! – respondeu, ansioso, o compadre Argemiro.

— Isso mesmo, o próprio. Ele era uma figura de envergadura, sabe? Parecia um gigante. Um galalau de santo. A barba dele chegava até aos pés e daí... bem... hum... daí...

— Fala logo, Chico. Não tenha vergonha, criatura! - intercedeu Dona Antônia. – Vosmecê era jovem, meio estabanado das ideias. Não tinha o juízo de homem sério de hoje.

— O que foi que aconteceu, madrinha? – quis saber Dandara começando a roer as unhas.

— O teu padrinho aí engabelou São Pedro. Levou o inocente na conversa.

— Bem... hum... não faço gosto de me prosear do ocorrido, não. Eu era frango novo, meio levado da breca. Cismei, teimoso feito uma mula, que queria dar uma olhadinha dentro do paraíso. São Pedro não quis deixar. Ele disse que não tava na minha hora e se eu entrasse... não sairia mais. Fiz birra pra me enfiar lá dentro, mas o santo era teimoso também. Depois de muito azucrinar o coitado, eu lhe falei bem assim:

— O senhor leva muito a sério esse negócio de promessa, não é mesmo?

— Sim. A promessa é algo sagrado.

— Eu também penso desse jeito. Então, prometo ao senhor que vou colocar a cabeça aí na fresta desta porta e vou dar só uma espiadinha.

— Vosmecê promete ir embora depois? – o santo me perguntou, esperançoso de se livrar logo do aperreio.

— Prometo.

— Então, quando ele abriu uma fresta... eu, bem rapidinho, me joguei no chão de barriga pra baixo, os pés virados na direção da porta e, forçando a entrada, deslizei o corpo pra dentro do paraíso. O Santo não soube o que fazer da vida. A minha cabeça passou por último. Daí, levantei e fui bisbilhotar tudo.

— Misericórdia, padrinho. Vosmecê ludibriou o Santo!

Seu Francisco só baixou os olhos, envergonhado.

— Continua, Chico. Fala pra eles como é que vosmecê saiu.

— Pois é... depois de olhar tudo lá dentro, bateu a saudade de Tonha. Fui falar com São Pedro. O santo tava muito arreliado comigo. Furioso por demais. A conversa foi bem assim:

— Meu Consagrado, quero ir embora.

— Eu te avisei que se vosmecê entrasse, não saía mais. Agora vai ficar.

— Por que não posso sair?

— Porque eu mando em tudo por aqui – ele disse, fulo da vida. Parecia uma cascavel pronta pra dar o bote.

— Então, o senhor manda mais que Jesus Cristo?

— Eu não disse isso.

— Mas eu vou falar pra Jesus Cristo que o senhor disse que manda mais que ele, sim .

— Espere aí... calma... calma... vamos fazer um acordo. Eu deixo vosmecê sair... se vosmecê não falar a nenhum mortal o que viu aqui dentro. Isso não é promessa, viu? É acordo apalavrado no fio do bigode. Vosmecê concorda?”

Assim que concordei, meus amigos, a escuridão tomou conta de tudo. Apaguei na hora. Só fui acordar nos braços de Tonha”.

Ooohhh!

— E por isso o compadre não vai poder falar o que viu lá dentro.

— Justamente.

O cego Idalino, como já temia o dono da casa, agitou-se na cadeira e pigarreou a fim de chamar a atenção da plateia.

— Seu Francisco, vosmecê não me leve a mal, não, mas essa história de ludibriar São Pedro desse jeito aí eu já ouvi, só que na pele de Pedro Malazarte!

Um silêncio constrangedor caiu na varanda.

O velho contador de causo esbugalhou os olhos, tremeu as pestanas de indignação. Ficou vermelho quem nem um pimentão e, sem mais, levantou-se da cadeira e saiu à rua na direção da porteira da fazenda, deixando as visitas atônitas.

— Aonde vosmecê vai, chico – gritou Dona Antônia preocupada com o marido.

— Me deixa, mulher, eu vou à cidade dar uma coça neste tal de Pedro Malazarte. Aonde já se viu um cabra afolosado dessa marca ficar se pavoneado com a história de EQM dos outros. Ahhh, isso não tá certo, não!

 

 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 13/10/2023
Código do texto: T7907520
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