O ESPETÁCULO DA CREUZA

Interessante lembrar que boa parte dos brasileiros sabidamente se orgulha de sua mestiçagem, ela contribuiu, e como! Para construção dessa nação, que tem tudo a ver com a palavra de ordem, da tradicional Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, aqui do Rio de Janeiro que se define como: “não é melhor, nem pior que qualquer outra, é apenas diferente”.

Foi a partir da inusitada fusão do catolicismo lusitano, o candomblé africano e o que ainda restou da cultura nativa, que foi gestado o sincretismo religioso brasileiro, frequente tanto nas tradicionais festas folclóricas, como em rituais de vigor e beleza endêmicos à terra brasilis.

E como produto desse caldo cultural, veio ao mundo Creuzinete, a que todos se referem como Creuza, uma mulata tipo exportação. Do alto de seus um metro e oitenta de altura, ainda é preciso adicionar saltos, estes que invariavelmente superam os dez centímetros, que lhe permite assim, ver o mundo sob outra perspectiva, e claro, boa parte desse mundo agradece a existência deste espetáculo, reverenciado em silêncio, pela poesia que embala seu cadenciado desfilar pelas calçadas do bairro, onde reside e trabalha esta empresária.

Este acontecimento diário é privilégio restrito aos moradores da localidade denominada como Bairro de Fátima, que faz parte do berço do samba carioca, a decantada em versos Lapa, que também sempre se fez pródiga nas páginas policiais.

Bem sucedida proprietária de um salão de beleza especializada na linha afro, onde literalmente faz a cabeça, e de tabela outras partes do corpo, influenciando também na forma de vestir de seus clientes, e de tabela até alterando a postura, ante uma sociedade onde ainda insiste em vicejar, o que hoje se define como racismo estrutural.

Essa mulata se veste de coloridos motivos africanos, incorporando coloridos turbantes estampados, e assim se tornou um ícone de excêntrica beleza negra do local.

Esta indumentária se altera de forma radical nas sexta feiras, quando Creuza se cobre de branco, em respeito à umbanda, afinal uma mãe de santo precisa seguir os princípios de sua religião. No terreiro que frequenta, todos admiram sua capacidade de lidar com problemas e adversidades, tão frequentes e fartamente noticiados, mostrando as adversidades que a intolerância religiosa causa a sociedade.

É mesmo na batida dos centros de umbanda, que se torna possível apreender novas possibilidades, pois este mesmo ritmo cadenciado que ajuda a baixar o santo, pouco se diferencia daquele “baticundum prucuriundum”, que levanta o público no sambódromo, enquanto a bateria se recolhe, mantendo o ritmo, enquanto as alas de passistas desfilam, por uma avenida que em delírio, canta junto e aplaude freneticamente a escola de samba.

Creuza, como não fica difícil supor, é o destaque principal do Salgueiro, rainha da bateria, ela vai à frente, encantando músicos e a quem mais estiver atento ao seu gingado e sensual requebrado, que ela com afinco oferece a platéia.

Essa alegria sem fim que Creuza sempre proporcionou a tantos, teve de repente seus elos partidos. Mesmo com o “corpo fechado”, o que significa gozar de um tipo de proteção mística contra doenças, ferimentos, etc. Não foi possível conter o ímpeto de um ex namorado, que obstinado, descarregou um pente de projéteis desfigurando aquele sorriso franco e o olhar maroto, que a tantos encantou.

A violência urbana, mais uma vez produz um feminicídio, novamente por motivos fúteis, dando fim a uma família que orbitava no entorno de Creuza, pois a partir de seu salão e de trajes estilosos, que desenhava e posteriormente expunha para venda, gerava emprego e renda direta e indiretamente para muita gente.

E foram estas pessoas, agora sem ocupação, que acompanharam em situação de desespero toda liturgia, que se encerra no enterro da vítima que teve o esquife coberto pelo pavilhão vermelho e branco do Salgueiro.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 25/10/2023
Código do texto: T7916474
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