PROFISSÃO DE FÉ

Ari 45 anos é mulato bonachão, carrega alguns quilinhos a mais, e virou flamenguista de televisão, depois da destruição da sua querida geral do Maracanã. Tem saudade do rufar da bateria ecoando pelo estádio, mas infelizmente nunca mais sentiu o coração bater ao ritmo da bateria da Fla Jovem. Pois é, quem diria que um dia, logo ele, o maior do mundo expulsaria de suas dependências o povão.

Depois de casado então, e ainda com um casal de gêmeos para cuidar, aí mesmo, que futebol passou a ser programa das ensolaradas manhãs de domingo, junto a sua turma das antigas, no maltratado campo de várzea, ali vizinho de sua casa na Baixada Fluminense.

Para essa turma que acumulou tantas horas de jogo, essa tradicional pelada domingueira, virou uma espécie de preliminar, jogo principal mesmo, passou ser a resenha, esta fartamente regada à cerveja, que propicia para todos a magia de congelar aquele mundo lá de fora, e a vida passa a ser pautada pela torrente de lembranças e fatos, que ocorreram literalmente dentro das quatro linhas, independente do tempo transcorrido.

Nessa festiva versão periférica do paraíso, degustam-se salgadinhos habilmente preparados por Dona Alzira, rechonchuda senhora, proprietária do boteco homônimo, onde com prazer, serve essa molecada, que viu ali crescer, e que nesses dias de descanso, conseguem manter viva, aquela chama da infância, rica em apelidos e brincadeiras politicamente incorretas, algumas até ofensivas, mas entre amigos, vale tudo.

Mesmo num grupo como esse, supostamente homogêneo, sob muitos aspectos, liderança e desavenças ocorrem, principalmente depois do relaxamento promovido pela rápida ingestão das cervejinhas, que chegam estupidamente geladas às papilas de cada um dos companheiros. Felizmente a turma do deixa disso age rápido, e consegue contornar a situação restabelecendo o clima de confraternização. Impressiona tanto a gregos, quanto a troianos, o que esse capitão mequetrefe conseguiu desorganizar!!!

Logo chega 2ª feira, e Ari zeloso motorista de ônibus, como outros seis mil, que circulam pela cidade do Rio de Janeiro cotidianamente, carregando sob seus ombros a importante missão de conduzir com cautela, uma carga para lá de especial, toda essa gente que sai cedo de casa para o trabalho e retorna já sob a luz do luar.

Sua rotina de morador da periferia o abriga a pular cedo da cama, faz rápido desjejum e parte correndo para a acanhada estação da Vila Rosali, ali na conflagrada Baixada Fluminense, para não perder o horário do trem.

Ufa, ainda bem que hoje deu tempo – Ari ficará de pé, apertado e sacolejando por mais de uma hora até a estação Central do Brasil, gare que há muito, perdeu esta pomposa condição.

Maria 40 anos, sua esposa, baixinha, tagarela e espevitada, nascida e criada na Baixada e filha de pais paraibanos, não teve oportunidade de estudo. Por ser primogênita, desde cedo ajudava sua mãe na cozinha, no preparo de comida para dez pessoas diariamente, e ainda encontrava tempo, para levar na caçamba da bicicleta, roupa limpa embrulhada e trazer à suja, da fiel clientela de sua mãe.

Essa coisa de não ter estudado sempre povoou a mente de Maria, e com o passar tempo, só fazia crescer sua curiosidade, do que acontecia dentro daquela imponente construção, em meio ao humilde cenário edificado de sua vizinhança na baixada fluminense.

A solução para o desejo de entrar na escola pública veio sob forma de emprego, pois contra a opinião de todos, conseguiu ser aprovada no concurso para merendeira, favorecida por suas reconhecidas habilidades diante de um fogão. Ela imediatamente se inscreveu na turma de Educação de Jovens e Adultos - EJA noturno e correu em busca do tempo perdido, no que foi incentivada por outros profissionais da escola.

Tão logo completou vinte anos sua vidinha, parecia precocemente resolvida, casada e desfrutando a estabilidade de servidora pública, como merendeira de uma creche municipal.

Um motorista e uma servidora pública formavam um casal diferenciado, num momento que seus vizinhos, em sua maioria, ainda viviam na precariedade da informalidade de um mercado de trabalho cada vez mais exigente e excludente.

Os dois não demoraram muito para definir também o tamanho da família, a gravidez veio em dose dupla, um casal de gêmeos aparecia claramente nas tomografias realizadas durante a gestação.

Todos lembram, e como, o sabor da comida antes de sua chegada. Maria gostava tanto de servir pessoas, que não foram poucas, às vezes, que trazia temperos de casa. Logo conseguiu apoio do pessoal da manutenção da escola, que se incumbiu da montagem da horta comunitária. O retorno, como seria de esperar, superou a mais otimista das perspectivas.

Passados dez anos como merendeira, muito aprendizado acadêmico e do funcionamento de uma creche, ela achou que chegara o momento de se demitir e assim dar o pontapé inicial na sua nova empreitada.

A repentina saída de Maria deixou boa parte da equipe triste, todos amavam sua alegria desmesurada, que aliada à magia na arte de cozinhar, a tornara uma pessoa prá lá de especial.

Essa planejada atitude coincidiu com a inauguração do segundo pavimento de sua casa. A princípio, o andar térreo seria alugado, para assim complementar a renda familiar. Mas, Maria não sossegou, até conseguir de Ari, a permissão para estrear no mundo dos empreendedores individuais, começando pela implantação de sua diminuta creche.

Maria, consciente da escassez de vagas disponíveis em creches públicas da região, sabia que não faltaria demanda, para seu pequeno estabelecimento privado. Em pouco tempo, estava com casa cheia, e para sua tristeza, precisou inclusive, abrir mão de clientes.

Pais que levavam filhos cedo para a creche ficavam enfeitiçados, tanto pela limpeza dos ambientes, como o inconfundível aroma de comida boa, perfumando a área externa do estabelecimento.

Logo, ficou claro para a família, que o pequeno investimento, gerava frutos, que beneficiava a todos. Agora, contas de concessionárias e de alimentação, que, diga-se de passagem, se aprimorara e como, ficavam por conta das despesas da creche.

Um alívio para Ari, que antes chegava a cumprir horas extras ao volante, para que nada faltasse em casa. Foi até estranho para ele constatar, agora, que a maior parte da renda familiar, não era mais proveniente do seu salário.

O porta voz da empresa onde trabalha Ari atende pelo nome Caxias, sujeito branquelo, magricelo e sempre com carrancuda expressão de poucos amigos. Caxias goza de unânime rejeição. Quando convoca algum funcionário, o intuito é sempre punir, e o faz com prazer que beira o sadismo, chegando mesmo a alterar sua expressão de felicidade. Agora, quando a chamada é coletiva, aí sim, deixa transparecer toda euforia de portador oficial de nefasta notícia.

Bom dia gente venho comunicar que a partir da próxima 2ª feira, a jornada de trabalho será alterada, todos farão parte do trabalho no período da manhã, e o restante ao final da tarde/início da noite. Não fui eu quem inventou essa história, a mudança foi oficializada por lei gente! Quem discordar, a porta de saída, é gentileza da casa. Todos sabem da crise de emprego no setor, e diariamente constatam a fila de profissionais, como vocês, buscando emprego no portão da nossa empresa.

Ari que ajudava a esposa na tarefa de entrega das crianças aos responsáveis, naquele conturbado horário de saída da escola. Em seguida, com sua desgastada Kombi, fazia compras no supermercado de gêneros fresquinhos, para as refeições do dia seguinte. Algumas vezes, ainda auxiliava Maria na cozinha, durante o preparo de parte das refeições.

Maria não parava de sonhar com a ampliação do estabelecimento, e por conta disso, transferia parte da receita mensal para uma poupança. Se num primeiro momento, contou com a colaboração de vizinhas, fazendo uma espécie de escambo. Quem trabalhasse meio período, teria matrícula integral e com alimentação para até dois filhos. Com o passar do tempo, acabou optando por profissionalizar o serviço, contratando auxiliares de educação para as turmas.

Maria foi quem mais sentiu os efeitos das mudanças no horário de trabalho do marido, pois contava com sua dedicada colaboração. Quis o destino, que da noite pro dia, essa entrosada parceria fosse desfeita.

Com Ari cotidianamente preso, ora em engarrafamentos, ora enfrentando a superlotação dos comboios, invariavelmente passou a chegar tarde e cansado em casa. A isso se juntava também o estresse da longa jornada de Maria, que mesmo contratando auxiliares, estes nunca chegavam aos pés do desempenho do marido.

Uma semana depois, nova convocação de Caxias, apelidado de picolé de jiló pelos funcionários, baseado na frieza no trato, aliado a seu amargo jeito de ser. Mais uma vez, nova notícia ruim para o grupo de motoristas, e péssima para trocadores. Todos seriam sumariamente demitidos. Apenas Caxias se mantinha eufórico na atormentada manhã de despedidas, era o fim abrupto de duplas, que juntas trabalharam por tanto tempo.

Quem faz uso do transporte público regularmente, nem imagina como sua segurança hoje corre perigo. Empresas privadas de transporte estão sempre buscando aumento nos lucros. Nesta tacada, conseguiram cortar quase pela metade custos com pessoal operacional.

Ari sentiu na pele esse esforço adicional, ele que sempre gozava seu parceiro: enquanto trabalho duro, você fica aí ouvindo música e contando esse dinheirinho.

Para sorte de Ari na nova função não remunerada, muita gente passou a usar o cartão de transporte, minimizando esse serviço de contar dinheirinho. Mesmo assim, ainda existe usuário que não aderiu ao cartão de plástico, e isso retém por mais tempo, o ônibus parado nos pontos.

A qualidade de vida de nosso personagem principal ficara seriamente desgastada, em função de tantas mudanças, em tão curto espaço de tempo. Seu humor, já não era mais o mesmo. O trânsito que nunca fluiu naturalmente, se intensificou, transformando em congestionamento o período antes restrito aos picos da manhã e da tarde. Agora o engarrafamento se estende pelo horário comercial. Ari, que tinha prazer ao volante, já começava o dia pensando no final do expediente. E a semana ficava cada vez mais longa, e o tão esperado domingo, praticamente evaporava.

Os percalços da vida de Ari ao volante não se limitaram aos desmandos da empresa, novos coadjuvantes passaram a entrar em cena, e o pior, drogados e de arma em punho, agindo sempre em dupla. Enquanto um controla o coitado do motorista, simultaneamente dá cobertura ao parceiro, que vai enchendo a mochila com celulares, carteiras, relógios e o que mais tiver valor.

Depois que saltam do veículo, o estresse pós trauma toma conta do interior de coletivo, e o motorista coitado, que ficou com um revólver apontado para sua cabeça, levará o veículo para a delegacia de polícia mais próxima. Esses dias trazem para os condutores um misto de maciças doses de tensão no momento do assalto, seguida do marasmo dos intermináveis registros de ocorrência e a tentativa de se produzir o retrato falado dos meliantes, que tem sempre como característica ser menor negro e usar um boné para dificultar sua identificação.

Essa conjunção de fatos, já levou Ari para consultas com o psicólogo da empresa, que simplesmente o encaminhou para o SUS. No final das contas, sabemos que a corda invariavelmente arrebenta do lado mais fraco.

Seus problemas começaram com perda do humor, falta de sono e cansaço, fatos que naturalmente atormentam profissionais dessa área. Ari sofre, e já fez até uso de medicamento de tarja, para assim, tentar superar essa confusa fase da vida.

Ele já não consegue mais repor suas energias no curto período de descanso em casa. Maria reclama insistentemente da sua falta da colaboração. O pouco tempo de convivência diária entre ambos acabou corroendo uma relação de autêntica parceria, que primava pela harmonia e colaboração mútua.

Para culminar essa triste fase, Ari teve seu ônibus sequestrado durante a travessia da ponte RIO/Niterói. Ele usou de toda sua experiência, para tentar controlar tanto o desespero do sequestrador, como o dos passageiros, todos a beira do pânico.

Depois de muita movimentação policial no entorno do ônibus, ele assistiu de local privilegiado o assassinato do destrambelhado aprendiz de sequestrador, que na realidade não passava de um exibido suicida.

Esse dia também ficou marcado pelo espetáculo non sense do então governador, que desembarcou do helicóptero oficial eufórico, e aos pulinhos comemorou a sumária execução por policiais, do aprendiz de sequestrador do ônibus.

Na realidade, toda comoção da imprensa e público, foi reflexo do inconsciente coletivo, vinculado ao trauma do “sequestro do 174” , ocorrido vinte anos antes, e que culminou com a morte de inocentes, função direta do despreparo da polícia.

Esse evento acabou sendo a gota d’água que desencadeou um turbilhão de pensamentos na desgastada vida de Ari. No dia seguinte, chegou bem cedo à empresa, em mãos, seu pedido de demissão.

Essa atitude vinha sendo gestada há meses, em longas conversas noturnas com Maria, mas a situação extrema vivida no dia anterior antecipou o desfecho do plano.

Finalmente, chegara a hora de empreender com mais vigor, a opção que Maria tomara alguns anos antes, e que ele agora passaria a encampar.

Com a repentina morte de sua mãe, Ari herdara a casa ao lado da sua. Assim, foi decidido que a família mudaria imediatamente para a casa vizinha, permitindo assim dobrar em curto espaço de tempo, o contingente de alunos. E assim a creche expandia, praticamente atendendo a demanda da vizinhança. Mais tarde, aproveitando a laje do 2º andar, a creche acresceu sua área em 50%.

Maria poderia enfim, concretizar seu sonho de empresária da educação infantil. O aumento do contingente de alunos permitia agora uma evolução pedagógica, com contratação de mais professoras e auxiliares.

Ari voltou a se responsabilizar pela compra de alimentos e materiais utilizados nas salas de aula. Ainda faz transporte das crianças, na nova van recentemente adquirida. Por outro lado, seus filhos estão terminando a faculdade e reforçarão em breve essa típica empresa familiar.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 14/11/2023
Código do texto: T7931574
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