Pedro Biso

 

                                              

Tonico Soldado pôs de lado seu rifle Winchester Papo Amarelo cartucho 44, a fim de guardar o canivete pica-fumo na algibeira. Mascando o tabaco e já cansado da espera, coçou a careca por baixo do chapéu de couro, matutando sobre o que diria ao Coronel Galdino, conhecido fazendeiro, pecuarista e grileiro para o qual trabalhava já há muitos anos. Matador tarimbado que era, com muitas almas na cacunda, não conseguia entender o porquê do não aparecimento do velho Pedro, depois de várias horas de tocaia. O homem passava lá todos os dias, próximo do pôr do sol. Ele, Tonico, havia se certificado disso. O jagunço se alimentara de uns frutos de araticum e vira passar juriti, marreco, caititu, veado campeiro e até um bicho arisco, o tal do lobo guará, mas nem sinal do velho escrivão. Coçara o dedo para abater o porco do mato, comida garantida naqueles dias difíceis, mas não era homem de não cumprir trato feito. Seu alvo era Pedro Ferreira, conhecido por todos como Pedro Biso, escrevente, juiz de paz, contador de histórias, rezador e curandeiro daquela região supersticiosa das Gerais. Pulou contrariado do angico vermelho sobre o qual esperara por umas quatro horas, debaixo do sol inclemente do sertão mineiro, e praguejou:


— Que Diabos! E essa agora, sô? O Coroné Galdino me mata. Com esse véio lá no cartório ele num consegue a posse das terra. O homi é honesto inté fala chega; tô é na rua... e meus fiote? Vão cumê o quê?

 

                                             ***

 

O velho escrivão do cartório do município, conhecido por todos como Pedro Biso, era cabra respeitado na região. Registrava tudo e celebrava casamento civil. Fora também inspetor de escola rural. Alto, ainda atlético para a idade, olhos de um azul da cor do anil, abdome definido pelas longas caminhadas em companhia de seu cajado com ponta envernizada, fazia a alegria da criançada com sua contação de histórias folclóricas, além de agradar as moçoilas com as leituras das linhas das mãos. O que previa raramente deixava de acontecer. Ainda ajudava os poucos médicos daquele agreste com seu conhecimento sobre ervas medicinais, tudo guardado em escritos antigos. Suas garrafadas ajudavam muitos moradores da roça, os quais tinham pouca oportunidade de contato com médicos. Profundamente religioso, conhecia inúmeras orações, inclusive o Responso de Santo Antônio para coisas perdidas. Segundo o imaginário dos moradores, possuía um livro secreto só de rezas para fechar o corpo, uma vez que colecionara muitos desafetos entre os grileiros poderosos que ousava desafiar. Com os netos, porém, era tão amável quanto rigoroso, chegando mesmo a se valer da palmatória aos pequenos que não lhe pediam a bênção.


— Seu Pedro, Seu Pedro, corre, sai da estrada, por baixo do arame! A Boneca tá de cria e invém desembestada, hômi! Ela já derrubô uns dois cabra... corre, sô!
— Vô Biso, tô com medo! — a pequena Marla agarrou-se às pernas de seu avô, tremendo e puxando as calças de linho branco de algodão.
— Calma, minha fia! Nada vai acontecê!


Do alto de seus nove anos, Marlene testemunhou o velho Biso erguer os olhos e mãos para o céu, murmurando palavras sussurradas, assumindo uma espécie de transe. As pessoas ainda hoje não acreditam no relato guardado em suas memórias: a vaca brava, a Boneca, a qual vinha em desabalada carreira, bufando e sacudindo os chifres, aquiesceu repentinamente, parecendo confusa e passando a trotar ao lado do velho Pedro e sua neta, meio sem rumo, até que desapareceu na curva da estrada de terra. Foi como se não estivessem ali...


— Vô Biso, cumé que o sinhô feiz isso? A vaca num viu a gente, né?
— Minha fia, quem tem fé não tem medo de nada! 

 

                                               ***

 

Pedro Biso sentava-se todos os finais de tarde à beira do fogão de lenha, ao lado de sua velha esposa Pina, mulher mirradinha, sempre de coque e sentada na poltrona de madeira vermelha feita por ele mesmo. Brandia um tição em brasa próximo das feridas que ostentava em ambas as pernas, de forma a transmitir o calor que aliviava a coceira. 


— Pedro, num tá perto dimais, hômi?
— Não, Pina! Cê sabe que é o que me alivia. Essa alergia é brava.
— Ocê chegô estranho onte. Foi tocaia de novo? 
— Foi sim, Pina. Mas o cabra safado não me viu. Minhas reza pra São Cipriano num faia, ocê bem sabe!
— Sei não, Pedro! Fico preocupada. Tá aconteceno muito...
— Escuta aqui, mulhé! Com o favor de Deus, os caminho vão se abrir. 


Dona Pina olhou para o velho companheiro de muitas décadas. Os olhos da pequena mulher ainda brilhavam ao reparar o porte meio marombeiro e a barriga seca, enxuta, do marido. Não deixava de pensar nas fofocas que já lhe haviam atazanado a paciência. Mas perdoava tudo quando o esposo lhe trazia o café na cama pela manhã, sempre acompanhado de uma rosa príncipe negro. Os treze filhos do casal eram a prova viva do amor duradouro, sem distinção pela Vó Pina. Até mesmo àquele que diziam não ser seu filho.

 

                                                  ***

 

Tonico Soldado estava tão bêbado que mal se aguentava em pé. A carraspana ocorrera após a reprimenda do Coronel Galdino, devido ao fracasso na última tocaia. O Chico, dono da venda, sabedor dos crimes do jagunço, se pelava de medo e sempre acabava vendendo a branquinha fiado, mesmo sabendo que dificilmente iria receber. O pau mandado do Galdino vociferava:


— Ô, Chico, ocê sabe qui num sô hômi de trabaio pelas metade. Num vô falá quem é, mas o dito cujo num passô lá, de jeito nimhum, sô!
— Ô, Tonico, num quero sabê dessas maldade não, hômi. Deus me livre, ora!
— Minha papo amarelo num faia. Cê vai vê só!
— Tonico, muda de vida inquanto pode. Qualqué hora a coisa vira procê. Dipois num fala que num avisei...


Passava das cinco da tarde. O calor das Gerais trazia aquela poeira de terra seca que entranhava-se na roupa, nos olhos e na alma dos sertanejos. Aquele mês era de pouco vento. Tonico soldado estranhou quando sentiu um bafo quente, seguido de um arrepio no cangote. Virou-se de súbito e deu de cara com o motivo de seu fracasso. Pedro Ferreira entrou pela porta dupla de madeira da venda do Chico e veio direto sentar-se à mesa de seu algoz, fitando-o diretamente com seus olhos azuis profundos. O capanga estremeceu.


— Ora, ora, se não é o Tonico matador! Ou seria, cachaceiro?
— Óia, seu Pedro! Num brinca cumigo, hômi. Tô minguado agora, mas logo ocê vai vê!
— E além de tudo, é tolo! Todo mundo sabe que ocê quis me pegá, seu cabra dos inferno! Mas, saiba que eu te vi trepado naquele angico vermeio, comeno fruto do mato e mascando aquele fumo fedorento.
— Num pode sê! Eu tava lá sim, com os óio bem aberto, hômi! E ocê num foi lá não sinhô, ou tinha virado carniça. Nunca neguei fogo não...
— Tonico Soldado, ocê fique sabeno, moço: meu 38 tava comigo. Eu te via na minha mira, inquanto que ocê nunca vai me vê, se eu num quisé. Te dei essa chance, pois sei de seus fio pequeno. 
— Intão, é verdade! Ocê tem mermo o corpo fechado?
— Tenho é fé, seu bandido! E paciência nenhuma. Te aconselho a pegar seus trem e sumí daqui. A coisa agora é outra...


O Chico tremia atrás do balcão, temendo um tiroteio ali mesmo. Mas só viu mesmo o Pedro escrivão levantar-se e sair de peito erguido, enquanto Tonico, pálido igual um defunto, fazia repetidamente o sinal da cruz.

 

 

 

 

 

Obs: pequena homenagem aos meus bisavós, Pedro Ferreira e Agripina e à minha mãe, Marlene. Muitos dos fatos relatados foram reais; outros personagens criados são fictícios, fazendo uso da licença poética.