E Bié é Nome?

Seu Bié era um velhinho fofo... Fofo, não! Era um véio chato pior do que carro à pato! Vivia me chateando com a indagação tão sem noção -: "Você vai se casá com militá?" Não época dos meus pais era glamouroso se casar com militares, mesmo que tivessem entrado pelo buraco de alguma janela, assim como um nórdico gostoso e imbroxável muito pop! .Eu respondia que nunca. Mas ele era repetitivo.

Seu Bié era feirante assim como o meu pai. Paizinho tinha uma barraca gigante e muito elegante até. Vendia de batom aos produtos de Cashmere Bouquet e ainda entrava de sola, o crochet que a minha mãe fazia com esmero no dia-a-dia. Já o negócio de seu Bié, era o fumo de rolo, charuto e rapadura da boa de tão doce que na boca era candura.

E todo final de semana, a mãe convidava seu Bié para jantar lá em casa. Às vezes ele levava a dona Alcina, a sua esposa com cara de tartaruga velha. Ela era cascuda, mesmo. Tadinha. Seu Bié se parecia com o pinguim do Batman. Se vestia com um terno de listras, calçava uma bota de jagunço e usava uma cartola. E a bengala sempre o acompanhava rodando nos seus pulsos. Um homem barrigudinho e de nariz muito pontudo. Aquela indumentária sempre me intrigava.

Antes das visitas chegarem, o pai advertia - : Cabrita, nada de perguntas . Não vá acanhar o seu Bié! Eu sempre acatava num meneio de cabeça como uma burrica de presépio.

As visitas chegaram e eu as recebi. O pai só me olhava de rabo de olho, de soslaio... Me chamou num cantinho e cochichou. : - Moleca, não vá aprontar. ( Tá bom paiiiiiii! O senhor é muito insistente...)

Prosa vai e prosa vem, a mãe tinha arrumado a mesa com todo o esmero; tinha de tudo e mais um pouco e até nos espaços, cabia mais ... Até mais tempero e pimenta pra língua de perguntadeira.

A minha boca de gamela entrou em ação!

- Seu Bié, como o senhor se chama? O véi ficou vremeio e respondeu.

- Meu nome é Bié; só Bié.

- Como assim? Ninguém se chama só Bié!

Eu já escutava as tamancas do meu pai tilintarem embaixo da mesa ( sinal de perigo). A mãe passava o avental na testa e a dona Alcina permanecia muda como uma tartaruga velha.

- Seu Bié, eu só quero entender. É Bié de que?

- É Bié de nada, menina.

O pai me encarava sob os óculos pronto pra me morder. Mas eu precisava investigar.

- Como pode se chamar Bié de nada? Daí eu vou à sua casa e grito: - Seu Bié de nada, está?

A mãe ofereceu limonada gelada para as visitas, queria quebrar o clima. Percebi que a dona tartaruga continuava muda. Prosa vai, prosa vem, olhei piedosamente para a dona Alcina e falei: - Dona Alcina, a senhora sabe o nome do seu Bié? Ela balançou a cabeça numa negativa e quando me dei conta, vi uma lágrima descer do rosto magérrimo do seu Bié. Aquilo doeu no meu coração.

Pai queria me esganar e me lascar a tamanca, mas foi consolar o amigo feirante.

- Meu amigo Bié, essa cabrita vai se ver comigo mais tarde. Seu Bié o repreendeu, não faça nada com a menina. E continuou.

- Eu nunca soube o meu nome. Fui criado num orfanato e nunca soube da minha família.

A confissão me apertou mais o peito. Levantei da mesa e o abracei dizendo: - Nesse momento eu o batizo de anjo Gabriel. E choramos um tantinho abraçados.

Dona Alcina sentia toda a dor e todo o amor num misto que nem ela entendia.

Nesse momento, pai e mãe entraram em ação e se prontificaram a procurar um meio de batizá-lo, pois nem certidão ele possuía, portanto, não existia. Mas isso eu já havia feito com os meus dotes de sacerdotisa. E com muito amor.

Tudo esclarecido e o jantar terminado. Seu Bié, agora, o meu anjo Gabriel, me abraçou bem forte como se fosse o seu último feito. Dona Alcina, contente e com ruguinhas nas bochechas caídas, me agradeceu e também me abraçou com muita ternura.

Ficou tudo bem naquela noite, porém no dia seguinte veio a notícia mais triste. Seu Bié Gabriel, havia partido num infarto fulminante.

Chorei como nunca havia chorado por ninguém, exceto pelos meus bichos, que vez ou outra, tinham cumprido sua missão na terra e partido.

Fiz uma plaquinha com uma lasca de caixote de batatas, um desenho de asas, flores e a homenagem ao Bié

Aqui jaz um anjo de candura. Bié Gabriel, meu protetor até no céu 🌼🕊️

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Luiz Gonzaga - Pagode Russo. (autor, João Silva).

Kathmandu
Enviado por Kathmandu em 28/01/2024
Reeditado em 29/01/2024
Código do texto: T7986759
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