FINJA QUE NÃO É COM VOCÊ?

Havia uma grande fazenda de gado. Era terreno a perder de vista. A propriedade abrigava um número assustador de Nelores. Era uma imensa massa branca de bovinos. Do alto, parecia que os campos estavam nevados. Eram milhares de bois divididos em enormes lotes. Os planteis possuíam uniformidade, quase não se distinguiam, eram proporcionalmente muito equiparados. O gado ficava o dia todo pastando, mastigando, ruminando e excretando. Ajuntavam-se. Comprimiam-se. E ficavam lá, impassíveis. Vez ou outra se moviam, principalmente na hora do volumoso e quando se dirigiam aos bebedouros. Fora isso não reagiam, pastavam, engoliam, ruminavam e mastigavam.

Os indivíduos sábios sobreviviam por mais tempo; muito embora, cedo ou tarde, sempre chegava a hora deles. O destino é inderrogável. Todos tinham sua hora. Um dia, sem exceções, todos seriam retalhados nos frigoríficos. Os bois experientes levavam à sério o lema sagrado nos redis e pastos: “finja que não é com você”. Deste modo, na hora de selecionarem os sacrificados, era de suma importância não encarar o fazendeiro, não atravessar o caminho do fazendeiro, não mugir perto do fazendeiro, não se indispor com a matilha dos 27 cães que cuidavam da herdade, não se distanciar da manada e, se possível, esconder-se no meio do ajuntamento para não ser notado. Assim, numa espécie de ciranda da morte, iam vivendo. E, para eles, estava tudo bem.

O fazendeiro possuía lá seus ajudantes, mas os mais terríveis eram os cães. Aqueles canídeos cruéis e covardes viviam vigiando de perto o gado. Bastava qualquer deslize para que eles, em grupo, rasgassem o coitado nos dentes. Porém, quando por algum acaso, adentravam sozinhos no pasto ou no curral, comportavam-se de forma vil; covardemente corriam com o rabo por entre as pernas para a segurança das porteiras. Nestas situações não perturbavam, sequer ousavam atazanar um bezerro. Aqueles cachorros eram bastante diversos. Haviam Rottweilers, Pastores Alemães e Belgas, Filas, e um monte de outras raças indefinidas. Inobstante à raça, todos comiam nas mãos do fazendeiro. Todos abanavam o rabo para o fazendeiro e todos, de vez em quando, levavam pontapés nos traseiros nos momentos de ira do fazendeiro. Mas, isso não tinha a menor importância. Leais e fieis, sempre se arrastavam ganindo de fino para perto do fazendeiro.

Certo dia um dos bois se indispôs contra aquela situação. Começou a perguntar, a contestar demais aquele sistema. Não se conformava, por que tinham que ficar ali parados, conduzidos ao bel-prazer do fazendeiro ou sofrerem na carne a truculência dos impiedosos cães? Houve um princípio de rebuliço que precisou ser contido. O velho touro alfa foi logo advertindo:

- Não cause problemas para os demais meu rapaz! Para sobreviver neste mundo um conselho apenas te dou, um conselho que ouvi quando aqui cheguei e espero que o dia que eu partir você possa ensiná-los aos mais jovens. Finja que não é com você! Finja que não é com você! Mentalize isso e viva!

- Mas...mas, mas nós somos touros, o armento é muito mais forte do que o fazendeiro, do que os peões, do que os cães; se a gente se unir acaba o sofrimento, acaba a matança!

- Nada de mais ou de menos! Na realidade, vai haver um grande morticínio se você continuar querendo desestabilizar a ordem natural das coisas meu filho! Essas ideias são perigosas! Aqui não se precisa de ideias, apenas se precisa de obediência! Quer saber, eu te ordeno, meta-se no meio do rebanho e esqueça os problemas que por enquanto não são seus, muito menos meus. Finja que não é com você e pronto! É o que basta! Retire-se daqui por bem ou por mal! Não quero lhe ver mais na testa da manada!

Ocorre que naquele dia, naquele mesmo momento, era chegada a hora de conduzir um novo lote para o abate. A boiada pressentindo o perigo se amontoou. Todo mundo queria ficar no núcleo da roda de bois gigantesca que se formou. Os caminhões boiadeiros já estavam estacionados, prontos para o transporte da carga. O fazendeiro, muito contente com o lucro que se desenhava, fumava um charuto após o outro e, para se refrescar do calor infernal, abanava-se com o seu enorme chapéu de cowboy.

Nisso um animal desatento acabou se apartando do grupo. Os cães logo o cercaram e, ferozmente, passaram a discipliná-lo com rosnados e mordidas. Mais de quinze cães castigavam o pobre diabo sem piedade. O jovem garrote não se conteve em face daquela covardia; interveio afastando os covardes cachorros ao apresentar suas poderosas armas, um par de chifres que poderiam ser fatais.

O fazendeiro asssitiu aquela cena de absoluta insubmissão e não gostou nada do que viu. A indisciplina não podia ser tolerada. Deu ordem a peonada para se livrar daquelas duas reses arruaceiras encarcerando-as nos veículos de transporte.

O velho boi, deixando o amigo para trás, e fiel ao lema do curral, conseguiu se embrenhar no meio da grei e mais uma vez conseguiu se safar da infausta destinação. O jovem touro não teve a mesma sorte. Pagou caro por sua ousadia. Tentou de todas as formas se desvencilhar dos laços, ferrões, mordeduras e chicotadas utilizadas para a sua captura. Porém, sozinho, totalmente abandonado pela força do rebanho, exausto pela luta inglória, acabou sendo humilhantemente vencido e embarcado rumo à inexorável morte.

Algumas horas depois os sobreviventes lá estavam do mesmo modo. Pastando, mastigando, ruminando, excretando. O alfa tinha razão. A verdade é uma só: Finja que não é com você.

Contudo, quando o caminhão já se distanciava daquele lugar, por entre os vãos da carroceria, o valente animal condenado vislumbrou o curral e a manada insensível que começava a se dispersar novamente. Respirou fundo e se sentiu completamente feliz por não mais estar ali.

Adolfo Kaleb
Enviado por Adolfo Kaleb em 11/04/2024
Código do texto: T8039454
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